As autoridades regionais não sabem exatamente de quantas pessoas falamos, não existem levantamentos sobre isso, não há estatísticas oficiais, mas os serviços diplomáticos e consulares sabem que há milhares de portugueses a passar por tremendas dificuldades naquele país e muitos deixaram de ter qualquer ligação à sua terra porque não têm condições financeiras ara isso.
Ao longo dos anos sempre me disseram aqui na Madeira que havia dois tipos de emigrantes na Venezuela: os que tiveram sucesso e conseguiram gerir esse sucesso pensando na poupança e no regresso e os que não tiveram sorte, que nunca construíram fortuna e que se limitam a fazer lá o que poderiam fazer na Madeira, gerir o seu dia-a-dia, muitas vezes contando tostões.
O Verão, com as festas e o sol, foi sempre a época do ano – mais do que no Natal – de regresso temporário à Madeira de milhares de emigrantes. Sempre foi assim.
El Dorado não para todos
Os “miras” como eram tratados os madeirenses emigrados – com carinho ou depreciativamente – quase sempre aproveitavam essa visita à Madeira para darem sinais de prosperidade, investindo na sua terra, sobretudo no imobiliário. E nada melhor do que mostrá-lo no meio onde nasceram, nas pequenas freguesias ou sítios, da ilha onde reencontravam amigos de infância que nunca saíram da Madeira mas que percebiam que o “El Dorado” venezuelano era sinónimo de sorte para muitos.
Mas não para todos. Porque se alguns vinham em férias, outros, porventura muto mais, nunca o faziam e muitos deles deixaram de ter qualquer ligação à sua terra.
Numa das minhas visitas à Venezuela – onde tive e tenho família, como inevitavelmente teria que acontecer – lembro-me bem que falei com pessoas que não visitavam a Madeira há 20 e mais anos, e reconheciam que ou não tinham condições, ou porque deixaram de ter familiares na ilha ou porque a sua vida familiar estava agora toda do outro lado do Atlântico.
Deixaram de ter qualquer vínculo à Madeira. Deixaram de ter motivos para visitar a terra de origem.
Outros reconheciam que não tinham condições financeiras, que a vida não tinha sido para eles o tal “El Dorado” que foi para alguns e com o qual sonharam quando partiram e que não queriam dar sinais de falta de sucesso, alguns diziam mesmo de fracasso, no contato com amigos aqui residentes. Limitavam-se a não vir à Madeira.
Fiquei então a saber que milhares de madeirenses residiam – mesmo antes de todos estas conturbações agora ocorridas – nas zonas mais pobres da cidade de Caracas e noutras urbes mais importantes (Valência, Maracay, Maracaibo, Barquisimiento, etc), incluindo nos chamados “morros”, uma espécie de favelas que formam um quase anel na periferia da capital venezuelana.
Criou-se erradamente, durante anos, a ideia de que na Venezuela os milhares de madeirenses, fala-se entre 300 e 400 mil incluindo as segundas gerações e seguintes, estavam todos bem de vida. Nunca foi assim.
Por isso, neste movimento de regresso precipitado à Madeira, quão inesperado quanto previsível, sobretudo quando tudo começou a agravar-se – e que ninguém sabe se será apenas temporal ou se definitivo – há quem garanta que milhares de pessoas que não têm condições financeiras para isso ou que nem têm património nem família na Madeira, nunca equacionaram esse cenário – salvo em situações extremas que possam vir a acontecer e que obriguem a uma evacuação total – pelo que vivem no dia-a-dia os mesmos problemas de milhares de venezuelanos.
Emigração desaparecida
Outro aspeto tem a ver com a emigração “desaparecida” ou seja os fenómenos de emigração que se desenvolveram – desde que as primeiras gerações trocaram a Madeira pela Venezuela – e que com o passar dos anos se foram diluindo na sociedade venezuelana, perdendo-se o rasto de muita gente que deixou de ter qualquer ligação com a Madeira e hoje se encontra totalmente integrada na sociedade local e sem quaisquer ligações e relações com a Região.
O outro lado da crise…
Nestes momentos de angústia e de aflição ou desespero, há sempre quem ache que as coisas não estão a ser feitas corretamente.
O caos instalou-se na Venezuela e não existem de momento perspetivas de saídas políticas para um crescente radicalismo do conflito entre o poder e a oposição.
Os mais atentos recordam que a comunidade madeirense na Venezuela sempre foi muito discreta em termos do envolvimento na vida política do país de acolhimento e que nos últimos anos, sobretudo depois da revolução bolivariana do falecido presidente Hugo Chávez – que visitou a Madeira em 2001 – essa postura acentuou.se ainda mais.
Aliás, idêntico fenómeno de desinteresse existe em matéria de recenseamento eleitoral, já que os níveis de participação dos portugueses na Venezuela nas eleições legislativas portuguesas, foi sempre, e confrangedoramente, insignificante.
Nas eleições legislativas nacionais de 2015, no caso do continente americano, se excetuarmos o Brasil e os EUA, nos restantes países da América, incluindo Canadá, Venezuela e outros, estavam inscritos 19.277 eleitores mas apenas votaram 445, cerca de 2,7%, número que dispensa mais comentários.
“A Venezuela está um caos. Há saques a estabelecimentos de portugueses, a maioria originária da Madeira, o regresso está ser equacionado por muitos mas o custo que isso envolve e a falta de disponibilidade financeira, deixa muitos num “beco sem saída”. Tudo desvaloriza, moeda, casa, carro. Tudo é inseguro, nas ruas e nas residências. Tudo é precário, o mais grave é a Saúde, com os hospitais sem meios para acudir às solicitações, valendo o profissionalismo dos médicos”, refere o Funchal Notícias num texto que teve por base um retrato da situação dado por Aura Rodrigues e Nataly Pestana, membros da Associação Venexos, organização de ajuda à comunidade.
Segundo aquele digital, Aura Rodrigues admitiu a existência de “episódios assustadores que ocorrem na Venezuela e que atingem particularmente a comunidade madeirense”:
“Num mercado em El Paso, San Pedro de Los Altos, Estado de Miranda, onde as bancas de vendas de produtos, 99,9% pertença de madeirenses ou luso-descendentes, foram destruídas por grupos de assaltantes, que nada têm a ver com as manifestações que têm ocorrido, mas que atacam, com a conivência das autoridades locais, incriminando a oposição pelo sucedido. É um desespero”.
Aura Rodriguez, que trabalhou muitos anos no consulado português em Los Teques, e cujo marido e demais familiares continua na Venezuela, reconhece as pessoas estão “desesperadas”.
Recentemente uma delegação dos governos nacional e regional, esteve em Caracas, procurando encontrar sem sucesso uma plataforma de entendimento com as autoridades locais, nomeadamente quanto à garantia de segurança para que fosse evitado o êxodo massivo que se teme possa vir a acontecer, se a situação se degradar rapidamente, e que pode gerar na Madeira uma grave situação social e económica, de dimensão incalculável.
Segundo foi noticiado mais de 4 mil pessoas terão regresso à Madeira desde início deste ano e 1000 delas estão inscritas no Centro de Emprego, nelas se juntando alguns jovens e muitos casos de escolaridade baixa ou nenhuma formação específica que em nada facilitam o acesso ao emprego desejado.
Recordo que o secretário regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus, Sérgio Marques, reconheceu recentemente que a Madeira não tinha condições para receber, em massa, os madeirenses de volta à Região.
A Associação Venexos, constituída há quatro anos no Continente português e que está há um ano em atividade na Madeira, diz que um desafio importante é o de lutar contra a burocracia das estruturas da Região, nomeadamente para garantir apoios que são atribuídos na Venezuela e que os beneficiários pretendem que sejam transferidos para a Madeira.
Aura Rodrigues não deposita esperanças no sucesso da visita governamental e nos alegados “compromissos” com as autoridades locais:
“Os contactos que fizeram no Centro Português de Caracas e em Valência, tiveram como alvo madeirenses com grande capacidade financeira, muitos deles já não têm grande património lá e, neste momento, não representam a maior parte da comunidade madeirense, aquela faixa que não pertence ao clube, porque é preciso pagar uma quota alta para ser associado, além de que não são esses que estão afetados pelos saques e a precisarem de ajuda”.
Aura Rodrigues e Nataly Pestana garantiram ao Funchal Notícias que a promessa de apoios, assumida pelo governo da Venezuela, é inconsistente e não anima o futuro dos madeirenses naquele País.
“Os que sofreram mesmo estão numa encruzilhada, vivem com dificuldades e não têm dinheiro para o regresso, porque tudo o que têm desvalorizou. Querem vender o que têm, mas não dá nada”.
Definitivamente o El Dorado venezuelano virou pesadelo de consequências ainda imprevisíveis. Independentemente do que possa estar a ser feito na Região, na preparação de um plano de acolhimento desses emigrantes, fica sempre a sensação de que há alguma sobranceria na forma como o Estado encara este problema, desconhecendo-se por exemplo se existe algum estudo que antecipe vários cenários sobre o que pode vir a acontecer.
Para que as pessoas possam aquilatar mais facilmente qual o impacto que esta crise poderá ter na Madeira, recordo que foi sempre voz corrente, assumida naturalmente por todos, que não havia na Região uma família que não tivesse familiares emigrados na Venezuela.
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