Na investigação para o meu doutoramento percorri abundantemente a doutrina italiana, berço do Direito Romano do qual herdámos importantes figuras do direito civil que resistiram à voraz passagem do tempo, mantendo-se intocadas ainda hoje, como a proibição de pacto comissório.

Um pacto comissório é um acordo pelo qual o credor pode fazer seu o bem ou direito dado em garantia no caso de o devedor não cumprir a obrigação garantida.

Existem apertadíssimas exceções à proibição de pacto comissório, e pode discutir-se se é lícita a subtipologia pacto marciano (que eu defendo), mas deixemos as tecnicidades e a dogmática por ora em paz e tratemos do sentido prático que tal proibição comporta – no que toca às dificuldades sentidas pelos credores.

Bem sei que é quase pecado mortal falar nas dificuldades sentidas pelos credores, mormente nas dificuldades dos credores-bancos, mas a experiência do dia-a-dia mostra como as relações creditícias podem tornar-se um inferno para estes, com a delonga e encargos da cobrança de créditos, desde logo nos empréstimos às empresas.

Cientes das limitações legais, os bancos solicitam garantias pessoais aos sócios-gerentes como condição para concessão de crédito ou financiamento às sociedades comerciais, com o loquaz argumentário comercial segundo o qual os donos das empresas devem ser os primeiros a acreditar no negócio, demonstrando-o com património pessoal a assegurar o cumprimento das obrigações assumidas pela empresa.

Mas quando as empresas não conseguem pagar aos bancos, a tentação de alguns sócios-gerentes que prestaram garantias pessoais é dissipar o seu património para que nada exista para executar no momento da cobrança coerciva: através de doações ou vendas simuladas a familiares ou amigos, divórcios que são separações apenas no papel (em que os bens do casal são integralmente atribuídos ao outro cônjuge), etc..

Aos bancos resta lançar mão dos adequados mecanismos judiciais, com os custos, a delonga, a incerteza e o risco de efeito útil reduzido.

Voltando à doutrina italiana, Angelo Luminoso defende que a lei protege o devedor da ilusão de conseguir cumprir, que o cega no momento da concessão do crédito, podendo levá-lo a aceitar condições excessivamente onerosas, como um pacto comissório.

Entre ilusões, proibições legais, risco e segurança dos créditos, a cobrança coerciva de dívidas é um inferno para os credores em Portugal, é uma entropia grave do nosso sistema judicial e é um obstáculo-ameaça ao investimento estrangeiro.

Sartre disse que o inferno são os outros e essa realidade é visível na arte de bem dissipar património, dominada por quem consegue sair ileso, imolando-se pelo fogo, quando tudo arde já à sua volta.