Imagino não ter sido o único cidadão português, não envolvido diretamente na elaboração do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português, a ter dedicado algum tempo a consultar o mesmo. E imagino também não ter sido o único a fazê-lo com a intenção apriorística de o criticar ou de o conhecer melhor sem ter por objetivo eventuais financiamentos.
No entanto, pelo que tenho lido e ouvido, parece-me que existe muito comentário elaborado com base no índice do PRR ou no tradicional “ouvi dizer” e que serão poucos aqueles que verdadeiramente o terão lido.
Pela importância imediata para o futuro da economia do nosso país, recomendo vivamente que se perca algum tempo a lê-lo. Mas não façam uma leitura isolada. Leiam, também, o documento, publicado no ano transato, denominado Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030, da autoria de António Costa Silva, e façam uma comparação por mais sucinta que seja.
O documento de Costa Silva, não sendo inovador em termos de pensamento estratégico, tinha o mérito de proceder a uma reflexão sistemática e holística sobre os interesses estratégicos de Portugal e delinear, ainda que sumariamente, algumas linhas de ação para o futuro da nossa economia.
Comparando os dois documentos, percebe-se a dificuldade de enquadramento do primeiro com o segundo, para além da utilização de alguma terminologia e conceitos semelhantes e de algumas linhas de ação muito genéricas.
E esse é o problema principal do PRR. É um instrumento que, supostamente, visa sustentar um conjunto de investimentos no sentido de apoiar a retoma “de um crescimento sustentado”, mas que, na prática, apenas de forma muito ligeira se enquadra na visão estratégica para o país proposta por Costa Silva. E ainda menos fornece os meios para sustentar a reforma dos pilares estruturantes da nossa economia.
Não querendo acreditar que assim seja, mas, por vezes, no atual discurso político-económico do Governo, parece que o documento de Costa Silva teve o seu efeito útil em 2020 e agora constitui um incómodo na gestão do imediato.
Não irei optar pela crítica fácil de que o montante aprovado para o PRR é claramente insuficiente para as necessidades da economia portuguesa, pois foi o valor que se conseguiu, embora bem aquém de outros países com necessidades semelhantes. Tal como não vou sublinhar que as propostas de investimento nele previstas primam pela dispersão ao invés da concentração no verdadeiramente essencial e prioritário, o que seria aconselhável face ao necessário efeito de desfibrilhação de que a economia real necessita.
Isto para não mencionar que a grande maioria dos investimentos previstos, além de manifestamente vagos, não se destinam ao setor privado e às empresas, verdadeiro motor da economia, sendo antes investimentos não reprodutivos ou investimentos na estrutura do Estado.
Convém, contudo, ter presente que do valor previsto no conjunto do PRR, menos de 20% terá como destino direto as empresas e, numa leitura otimista, de forma indireta, nomeadamente através do desenvolvimento de infraestruturas, talvez se consiga atingir algo em torno dos 40% do valor das verbas atribuídas.
No entanto, aquilo que mais me preocupa não é qualquer das questões que acabei de enunciar, mas, muito simplesmente, o que a soma das mesmas parece querer significar, i.e., a ausência de uma visão estratégica para o futuro da economia nacional e, consequentemente, a ausência de um plano efetivo, mesmo que em linhas gerais ou sumárias, que permita atingir um conjunto de objetivos enquadráveis na defesa dos nossos mais básicos interesses estratégicos.
O PRR representava mais uma oportunidade, pequena é certo, de pensar o nosso futuro coletivo e promover de forma decidida o investimento necessário ao mesmo. Um futuro estrategicamente pensado e não gerido de forma avulsa, à mercê do acaso e dos riscos da envolvente. Neste momento, realisticamente, não sabemos quando teremos outra oportunidade assim. Podemos, no entanto, encarar o futuro como a cigarra da fábula esperando sempre o melhor, mas, infelizmente, nunca nos preparando para o pior.