No domingo passado, Deus levou um homem muito especial que me marcou como poucos e que nunca esquecerei. Segunda-feira rumei à Igreja de São Gonçalo em Amarante para o ver a última vez e para estar com a família e alguns quadros do grupo mais próximos. Apesar de se saber que a sua doença era terminal, pairava naquela igreja uma profunda tristeza, a tristeza duma perda irreparável.
No domingo, quando soube e com a memória do meu amigo no coração, escrevi umas linhas numa rede social, mas ontem achei que ele merecia mais. Muito se tem dito e escrito sobre o engenheiro António Mota nestes dias, mas há algo que é só meu: as memórias da minha relação com ele, que refletem facetas menos conhecidas e que achei que devia partilhar, como homenagem, mas também como paliativo para a ferida que ele me deixou, a mim e a tantos outros com quem se foi cruzando na vida.
Como emerge o líder António Mota
Em 1995 e com 41 anos, António Mota assume as rédeas da Mota e Companhia logo após a súbita morte do seu adorado pai, fulminado por uma pneumonia fatal depois de visitar uma obra no Algarve. Mas o luto foi curto – nas primeiras entrevistas não consegue reprimir a sua energia, a sua ambição nem o sorriso de confiança num futuro fantástico para a empresa. Não era a maior construtora, mas garantia que ia ser porque tinha a vontade, o saber e a garra.
E vem prová-lo em 1999 com a aquisição da Engil, uma casa reputada em edifícios e pontes complementando na perfeição a força histórica da Mota em infraestruturas. Mas esta operação tem importantes implicações adicionais – traz uma cultura de rigor e uma equipa de topo de alta craveira que deslumbram o engenheiro.
De facto, o atributo distintivo da Mota e Companhia era a capacidade de desenvolvimento comercial em “golpe de asa”. A Engil traz-lhe uma cultura de gestão comercial e de engenharia/produção mais profissional, corporizada num trio de executivos de topo – Martim de Oliveira (comercial), Ismael Gaspar (considerado por muitos o melhor diretor de produção em Portugal) e Gonçalo Moura Martins, o brilhante CFO da Engil. A incorporação deste trio na comissão executiva do grupo trouxe um salto qualitativo enorme à gestão do grupo e à solidez das ambições do engenheiro – mas trouxe também à tona de água as profundas divergências entre os quadros de cada uma das duas empresas.
Não quero entrar em detalhes, mas testemunhei em comissão executiva discussões acesas. O engenheiro não intervinha, ouvia com apreço essas discussões porque as via como um instrumento de crescimento e aprendizagem que forjava a cultura da nova Mota Engil
Os primeiros tempos da nossa relação: da Europa Central ao programa de reorganização do grupo
Já era sócio da consultora onde estava desde 1990 quando em 2002 surgiu a oportunidade de fazer uma apresentação sobre um programa de clarificação estratégica e reorganização do grupo.
Fomos recebidos pelo conselho de administração em peso e foi nesse auditório na Rego Lameiro que apertei a mão ao engenheiro pela primeira vez. Ouviu a apresentação em silêncio, não fez perguntas e quando terminámos vira-se para trás e pergunta em voz bem alta a toda a assistência: “Então, o que é que acham? Devemos avançar para isto e sentem-se preparados para as consequências que vai ter para todos nós ou ficamos na mesma?”. Percebendo que ele queria avançar, as cabeças acenaram sem palavras.
Não obstante, a operação da Europa Central agonizava e o seu líder, Arnaldo Figueiredo, fez uma sugestão diferente: antes de tratar do grupo faria sentido sermos “testados” com o desafio da Europa Central. A situação estava de facto péssima e sugerimos medidas agressivas para limitar os danos. Passámos o teste e em 2003 arrancámos com a reorganização do grupo Mota Engil, com um vasto programa de transformação com o objetivo de garantir um crescimento acelerado e rentável do Grupo reforçando o peso de novos mercados e dos novos negócios.
Criaram-se quatro áreas de negócio com CEO e equipas próprias e as três irmãs acionistas passaram a ser não executivas, tarefa nada fácil que obrigou a reuniões coletivas das irmãs só comigo para criar confiança em mim, no modelo e no novo estatuto de cada uma. E acabámos por resolver nessas reuniões um dos temas mais delicados do programa – Maria Teresa deixaria o cargo de CFO do grupo a favor dum profissional externo que já lhe reportava.
É oportuno frisar um aspeto fundamental da dinâmica acionista. Sempre existiu uma união de granito entre as três senhoras e na minha opinião foi graças a esta união, à enorme confiança e amor pelo irmão e ao famoso modelo de repartição do poder acionista deixado pe lo Pai que esteve em boa parte o segredo do sucesso do Grupo.
Entretanto, apesar dos primeiros passos na diversificação, a Mota Engil Engenharia e Contrução (MEEC) nunca deixou de ser o coração económico e emocional do grupo. A liderança da unidade sempre esteve com o patrão, mas isso já não era compatível com o novo modelo. António Mota tinha de subir para presidente e CEO da nova holding e passar a liderança da MEEC a outra pessoa. A primeira reação do engenheiro em sair da MEEC foi muito má …, mas fui lentamente insistindo até que numa apresentação ao conselho decidi ser muito assertivo e mesmo agressivo na argumentação. Todos perceberam a inevitabilidade da transferência do engenheiro. E ele acabou por aceder.
Como nasce e se fortalece a nossa relação de amizade
O programa de reorganização durou 18 meses e implicou mudanças estruturais que mexeram inevitavelmente com interesses instalados. O engenheiro sabia disso e precisava de alguém externo de confiança para “bater bolas” e ajudar a tomar decisões.
Escolheu-me para esse papel e começámos a ter conversas delicadas a dois sobre nomes para cargos, sobre o perfil das pessoas e consequências da sua nomeação para certos lugares. Passámos a ter uma relação diferente, mais íntima e de primeiro nome. Nessas longas tardes fumávamos com gosto (ele Camel, eu Chesterfield) mas o António batia-me três a um e no fim aquele cinzeiro preto era uma pirâmide de beatas. Numa dessas reuniões disse-me “João, estamos a abrir uma caixa de Pandora” … e era verdade, mas isso não o fez hesitar, executou o plano todo sem vacilar e sem olhar a meios para atingir os fins.
Este processo ensinou-me a admirar e muito o António – a sua violenta argumentação para ter a certeza fosse do que fosse, a sua inteligência pragmática, a sua força de vontade, a sua frontalidade e uma capacidade de tomar decisões difíceis e de risco que são apanágio raro de alguns grandes empresários. Ao mesmo tempo, tinha mais do que consideração pelas pessoas que respeitava – dava tudo por elas, tinha admiração, amizade, uma generosidade sem limites e a genuína afeição reservada às pessoas com uma personalidade profundamente humana. para mim tornou-se no amigo António com o seu feitio às vezes explosivo, mas a sós com o carinho nos olhos e nas palavras e com o seu sentido de humor tão especial.
A contratação de Jorge Coelho, com quem trabalhei e me impressionou como um gestor inteligente focado em resultados, demonstra quanto o engenheiro era obstinado e quando a sua cabeça estava feita não era abalada por nada, por mais críticas que chovessem de fora como choveram.
O dia em que o engenheiro me aponta a espingarda
Voltei a ter o privilégio de trabalhar várias vezes com o António e senti sempre a mesma amizade e confiança – até que um dia vem com um carta na manga.
Estávamos em 2012. Eu era o líder da AT Kearney em Portugal e, na altura, do projeto do NAL em Alcochete para o consórcio da Mota Engil. Abrimos o novo escritório no Heron Castilho com um cocktail a clientes e amigos. O António não faltou e a certa altura diz-me que precisa de falar comigo a sós. Fechados numa sala de reuniões, foi direto ao assunto – “O João tem de vir para a Mota Engil, vai ser o novo CFO do grupo e não vou aceitar uma recusa sua, não vou sair hoje daqui sem o seu compromisso de que posso contar consigo” O Presidente mundial da Firma, Paul Laudicina, estava em Lisboa para a festa e a dada altura, como eu não saia da tal sala e tinha de tratar dos convidados, o Paul entra para ver o que se passava. O António não vacilou e explicou ao Paul que estava ali para me levar para o grupo. O Paul não quis acreditar na ousadia, mas lá lhe explicou que não podia ser, estava com a firma só há dois anos e que via em mim potencial de carreira internacional.
Aproveitei a deixa para polidamente recusar, o assunto ficou encerrado, mas sinto que o António nunca se esqueceu duma ofensa que não esperava.
Entre nós não foi só trabalho, foi sempre muito mais
Fora dos escritórios e das visitas a obras a nossa relação foi ainda melhor, como no casamento da sua filha Inês ou passar o dia na sua casa na ilha do Faial com a família. Nesse dia no Faial, aterro, saio do terminal e vejo na estrada o António à minha espera de polo e calções e mãos nos bolsos. Eu podia ter ido cinco minutos de táxi …, mas ele fez questão em estar ali à espera para me ir buscar pessoalmente. Depois foi mostrar-me a ilha, tomámos gins tónicos no Peters Café Sport… em tudo transpirava a sua afeição e a sua generosidade. Fomos para casa onde nos esperava a sua esposa Rosa Maria, uma senhora muito especial, com uma bela costela mindinha … à moda de Amarante.
O engenheiro António Mota partiu cedo demais, às vezes a vontade de Deus é difícil de entender e ainda mais de aceitar
O António deixou-nos aos 71 anos, cedo demais, um jovem sete anos mais velho do que eu. Perdi um grande amigo que me marcou e que nunca vou esquecer. Um grande senhor que deixou um legado enorme. Fica a memória do esposo, do irmão e do pai como o homem feliz e realizado que foi toda a vida e que a fotografia em cima espelha bem, à falta duma com o colete e o capacete de obra que o acompanharam até ao fim, depositados no seu caixão aos seus pés.



