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A corrida mais louca do mundo. O mundo acelera para desenvolver a vacina contra a Covid-19

A meta: a vacina que nos permitirá deixar a pandemia da Covid-19 para trás. Os concorrentes: mais de 100 a nível global, desde as ‘big pharma’ a pequenas equipas, e muitos em cooperação. O combustível: milhares de milhões de dólares para desenvolver, testar, produzir e distribuir no mundo inteiro. O perigo: a velocidade excessiva que pode levar à ultrapassagem de passos cruciais. Nunca houve uma corrida assim.
1 Maio 2020, 15h00

“Com a sequenciação do genoma, tínhamos o tiro de partida para a corrida”, disse Anthony Fauci, em março. O imunologista americano, que preside ao National Institute of Allergy and Infectious Diseases e que já estamos a habituados a ver a acompanhar Donald Trump nas conferências de imprensa, falava de como a publicação online, a 11 de janeiro, das cerca de 30.000 ‘letras’ do código genético do vírus permitiu aos cientistas iniciar aquela que poderá ser a corrida mais rápida de sempre para produzir uma vacina.

Para Heitor Costa, diretor executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), “é uma inovação dentro de um setor inovador, porque a ideia de poder desenvolver uma vacina em tão pouco tempo nunca se verificou, para um objetivo à escala global que também não existiu noutras situações”. Ao Jornal Económico, Costa explicou que o facto de o SARS-Cov-2, o coronavírus que provoca a Covid-19, ter sido sequenciado tão rapidamente contribuiu para se poder acelerar o processo.

O número de participantes na corrida já ultrapassou a centena, segundo Seth Barkley, CEO da GAVI, uma aliança formada pela Organização Mundial da Saúde, a Unicef, a Fundação Bill & Melinda Gates e outros parceiros.

Uma análise feita pela Nature, uma das mais conceitudas publicações sobre ciências naturais, com base numa lista desenvolvida pela OMS, mostra que a 20 de abril havia 115 candidatos ao desenvolvimento da vacina, dos quais 78 tinham projetos confirmados como ativos e os restantes por confirmar. Desses 78, um total de 73 estão em fase de exploração pré-clínica e cinco em clínica.

A corrida não impressiona só pelo número, mas também pela variedade, a vários níveis. “Os mecanismos de ação e as abordagens para as vacinas são diversas, estão a ser tentadas muitas abordagens em termos de mecanismo de ação”, referiu Heitor Costa, enquanto a Nature classificou o espectro alargado das tecnologias em avaliação, muitas nunca antes utilizadas em vacinas, como “uma característica impressionante”.

A variedade estende-se também à natureza dos candidatos. Dos que estão confirmados, 56 (ou 72%) são projetos do sector privado, enquanto os restantes 22 são liderados por organizações académicas, públicas ou não-governamentais. A Nature sublinhou que muitos dos candidatos são gigantes farmacêuticas, como a Janssen, a Sanofi, a Pfizer ou a GSK, mas muitos outros também são projetos mais pequenos, com pouca experiência na produção de vacinas em grande escala. A corrida é global, ou pelo menos envolve as grandes potências. Os Estados Unidos têm um pelotão de 40 candidatos, a China 27, a Europa 18, enquanto no resto da Ásia e na Austrália há um total de 14 projetos.

A diversidade não representa, contudo, descoordenação. Há esforços para mobilizar cooperação entre os vários players. “Só vamos travar a Covid-19 através da solidariedade”, vincou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, que também já estamos acostumados a ver na televisão. “Países, parceiros de saúde, produtores e o setor privado têm de agir em conjunto para assegurar que os frutos da ciência e da investigação possam beneficiar todos”.

O discurso do etíope teve lugar num evento na semana passada que reuniu chefes de Estado, os líderes da União Europeia e das Nações Unidas e ainda de várias organizações como a Cruz Vermelha e a GAVI. Mas nem tudo foi um mar de rosas e houve um ausente notável: os Estados Unidos. Poucos dias depois de ter cortado o financiamento à OMS, a administração Trump enviou uma mensagem a dizer que embora não estivesse presente, os Estados Unidos continuam determinados a liderar as questões da saúde a nível global, incluindo a Covid. A mensagem incluiu, no entanto, um recapitular dos receios sobre “os grande fracassos da OMS, que ajudaram a fomentar a pandemia”.

Se há desentendimento entre alguns países e organizações, a habitual feroz concorrência entre as gigigantes farmacêuticas parece ter sido posta de lado, pelo menos parcialmente e por ora. “Há empresas elas próprias em consórcio, por exemplo a Sanofi e a Glaxo, afirmou. “Há aqui um objetivo de saúde pública que é global e que se sobrepõe a tudo o resto”.

Bill Gates e o “desperdício” que vale a pena
Outras gigantes farmacêuticas aliaram-se a instituições de investigação com reputação global. A Janssen, do Grupo Johnson & Johnson, formou por exemplo uma parceria com a Autoridade Biomédica de Investigação e Desenvolvimento Avançado (BARDA) dos EUA para cofinanciar a investigação, desenvolvimento e ensaios clínicos da vacina num valor de mil mihões de dólares.

Filipa Mota e Costa, diretora geral da Janssen Portugal, referiu ao JE que a vacina é “um imperativo global que acelerou a importância de unir esforços entre a indústria farmacêutica, biotecnologia, academia e as autoridades, adiantando que “toda a comunidade científica está a trabalhar e a colaborar para obter resultados”.

Numa corrida que começou de forma tão repentina, com tantos e diversos concorrentes a perseguirem objetivos globais mas também individuais, é difícil dizer quanto é que vai ser gasto no total.

A Coalition for Epidemic Preparedness Innovation (CEPI), uma parceria entre governos e indústria para combater doenças, prevê que desenvolver uma vacina contra a Covid-19 num período que escile entre 12 e 18 meses deverá custar cerca de dois mil milhões de dólares.

Heitor Costa, da Apifarma, disse que esse é o valor médiobinvestido no desenvolvimento de um novo medicamento. “Num caso normal, em cada dez candidatos que ultrapassam as fases iniciais, temos uma vacina no mercado”, explicou. “O que está a acontecer com a Covid-19 é que se está a desenvolver muita coisa em simultâneo, há uma rede muito extensa e portanto será muito superior, resultado de colaboração sem precedentes de quem financia e quem é financiado”.

Bill Gates, fundador da Microsoft e um dos maiores filantropos do mundo, já está, por exemplo, a financiar a construção de fábricas para sete candidatos que estão a desenvolver a vacina. Para Gates, serão “desperdiçados alguns milhares de milhões de dólares, porque certos projetos vão superar outros, mas milhares de milhões nesta situação em que estamos a perder biliões na economia, é algo que vale a pena”.

À medida que os projetos aceleram, a bandeira da meta parece ficar mais perto. Esta semana, investigadores do Jenner Institute em Oxford anunciaram que planeiam fazer testes em humanos em maio, com vista a produzir a vacina ainda este ano. Ontem, a Pfizer também carregou no pedal e disse que quer iniciar testes na próxima semana, para ter a vacina pronta em setembro. No caso da Janssen, o objetivo é ter a confirmação de que a vacina está a funcionar no início 2021. Tal como Gates, Heitor Costa acredita que o objetivo será ter a vacina pronta em 18 meses. “É o cenário desejável, mas não significa que isso venha a acontecer com 100% de probabilidade”, disse.

Adiantou que apesar da rápida sequenciação do genoma, “ainda há muita coisa que desconhecemos sobre este vírus, designadamente sobre a anti-genicidade”. O diretor executivo da Apifarma sublinhou que “há linhas vermelhas que qualquer medicamento tem de respeitar, que começa na toxicidade pré-clinica e na eficácia, e esses passos que têm de ser dados”.

Oportunidade para Portugal
Com ou sem excesso de velocidade, um dia a vacina estará pronta e depois disso ainda há passos a dar. “Temos de ter presente que, tão importante quanto a descoberta da vacina, é ter a capacidade de a produzir e distribuir numa escala global e é por isso que, na Janssen, estamos a trabalhar em várias frentes”, afirmou Filipa Mota e Costa. A empresa quer ter disponíveis mil milhões de doses da vacina para distribuição a nível global numa base not for profit.

E depois disso? “Ainda é muito prematuro para pensarmos em questões de preço. Será um tema para abordar com as autoridades de saúde e com um objetivo comum: garantir o acesso desta vacina de forma abrangente, também em Portugal”.

A Janssen diz que ainda está “aberta a porta” para trazer ensaios clínicos para Portugal, um país que “tem uma estrutura de ensaios capaz e preparada para conduzir estudos deste tipo”. Filipa Mota e Costa realçou que os hospitais portugueses também têm capacidade e as autoridades de saúde já assumiram publicamente que vão aprovar qualquer ensaio clínico nesta área em 48 horas, “o que é muito positivo”.

Os ensaios clínicos serão globais, e todos os países estão interessados em participar, disse. Para além da capacidade, do ponto de vista de fiabilidade, um dos critérios de escolha para participar num programa desta envergadura é a celeridade dos processos de aprovação e recrutamento.

“Este é o ponto fraco de Portugal onde, infelizmente, o país não tem o melhor dos históricos em termos de agilidade regulamentar, ficando muito atrás dos seus congéneres da UE”, alertou. “É uma questão de reputação que não joga a nosso favor”.

Para a Apifarma, a indústria farmacêutica poderia participar de várias formas, além da eventual participação nos ensaios, por exemplo no desenvolvimento de novos compostos e novas abordagens.

“Era bom que também pudesse haver algum desenvolvimento no fabrico, mas não temos ainda nenhuma fábrica de biotecnologia, portanto, poderia ser uma oportunidade para atrair investimento direto”, concluiu Heitor Costa.

Artigo publicado no Jornal Económico de 30-04-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor

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