O Festival Tribeca nasceu em Nova Iorque pouco depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, como ponto de encontro do cinema independente e de novos talentos, numa espécie de dínamo para revitalizar a baixa de Manhattan e trazer perspetivas de futuro. O futuro, segundo o Tribeca, passa pelo storytelling, pela partilha de histórias em diferentes formatos. Foi nesta modalidade que aterrou pela primeira vez na Europa, em Lisboa, numa estratégia de expansão do projeto.
Não faltaram os fundadores do evento, Robert De Niro e Jane Rosenthal, nem vedetas do grande ecrã, como Whoopi Goldberg ou Griffin Dunn, imprensa e curiosos. Muitos curiosos que, segundo a organização, terão esgotado as muitas talks que marcaram esta primeira edição do Tribeca do outro lado do Atlântico. Entre passeios das vedetas em carrinhos elétricos pelo Beato Innovation District, epicentro do evento nos dias 18 e 19 de outubro, e concertos vários, passando pela tenda principal ou mesmo espaços secundários, como aquele que foi destinado às “Untold Stories”, se exercitou o verbo ‘ver e ser visto’ e se deu lastro a conversas entre diversos protagonistas.
Patty Jenkins, cineasta e produtora norte-americana, e a mulher por trás da câmara de filmes como “Monstro” (2003), que deu a Charlize Theron um dos papéis mais singulares e menos glamourosos de sempre, “Mulher-Maravilha” (2017) e “Mulher-Maravilha 1984” (2020), é, com meras três longas-metragens realizadas, uma das mulheres mais poderosas do cinema norte-americano.
A californiana de 53 anos, que se diz adepta de histórias “profundas” e “humanas”, começou no cinema independente e fez tudo para se manter nesse campo, mas acabou a fazer televisão. Como assim? Realizadora oscarizada (“Monstro” ganhou uma estatueta em 2003) vê as portas fecharem-se pelos executivos de Hollywood, mas, de repente, quando tudo corria mal, tornou-se a primeira mulher a realizar um filme de super-heróis.
O que quer Patty Jenkins dizer com “histórias humanas”? A realizadora recorda que o primeiro filme da super-heroína gerou debate por ter sido pioneiro num universo dominado por homens. Até então, quando muito as mulheres partilhavam o protagonismo em filmes em que partilham o protagonismo com super-heróis, como os Vingadores, X-Men ou Quarteto Fantástico. Refira-se, a título de curiosidade que na BD já tinham direito a títulos em nome próprio há mais de 50 anos.
Shakespeare vs. a ‘ditadura’ dos dados
Ora, poderíamos ser levados a pensar que “toda a gente queria ver uma personagem feminina. E queriam ver uma mulher a realizar” esse filme, refere, para logo esclarecer que “não era isso que estava em causa”. “O ponto é que se tratava de uma viagem de um herói contada por um ângulo muito específico, e essa é uma fórmula muito antiga”. E conclui, “limitei-me a abordá-la como uma história muito humana”.
Fazendo a ponte com a utilização de dados (data), Patty Jenkins – cujos trabalhos na televisão incluem “Arrested Development”, “Entourage” ou “The Killing”, que lhe valeu uma nomeação para um Emmy pelo episódio piloto – diz que “o uso de dados é uma coisa controversa” e que estes “têm sido absolutamente sobrestimados”. O ser humano sempre teve dados e, refere a cineasta, o que “agora recebemos de todos os streamers”, é a indicação de que “temos de mostrar o ponto alto da história logo nos primeiros minutos”, ou as pessoas perdem interesse.
Invocando a engenharia inversa de bases de dados, que também recolhe metadados, lembra que essa abordagem, “tem sido aplicada à arte e sempre falhou”. Por outras palavras, “milhares de anos de dados dizem que isso não resulta”. Para ilustrar o que diz, traz à conversa uma grande obra do bardo, “Hamlet”. “Shakespeare nunca teria começado Hamlet no auge da peça”. “Pessoalmente, acho que os dados estão a ser sobrestimados em todos os domínios. Nós, enquanto animais, estamos interessados em mistério. Ora, só se consegue usar dados para fazer o que já foi feito”. Ou seja, insiste, os grandes estúdios “pensam que uma coisa vai ter sucesso com base no que teve sucesso no passado”, aponta.
E contrapõe a atitude dos novos criadores, “miúdos da geração seguinte que encontraram o seu público”, e que não só ignoram tais pressupostos, como tiram partido das plataformas de streaming. “Fico estupefacta, pois ninguém podia saber [de antemão] que as pessoas queriam ouvir a história deste ou daquele miúdo ou daquela pessoa”. E deixa o alerta, que diz já ter dado à indústria cinematográfica norte-americana. “Acordem, porque as pessoas que vêm ter connosco não precisam de vocês. Elas vão encontrar o seu público e ninguém lhes pode dizer para irem embora. E é por isso que estou aqui”, no Tribeca Lisboa. “Acredito profundamente no poder das histórias. Foi através do poder das histórias que mudámos as vidas uns dos outros durante milhares de anos”, sublinha.
As histórias são importantes e o ‘tax credit’ também
O Fundo de Apoio ao Turismo e Cinema, criado em 2018 como mecanismo de incentivo para rodagens em Portugal, como o filme “Velocidade Furiosa 10” e a série “Rabo de Peixe”, teve, em 2023 uma dotação de 14 milhões de euros, a distribuir por duas fases de candidatura. A primeira fase decorreu em abril e recebeu 50 candidaturas, totalizando 20,1 milhões de euros, valor superior ao orçamento disponível para todo o ano de 2023.
No caso das grandes produtoras internacionais de cinema, tem havido manifestações de interesse em se instalarem em Portugal, construindo estúdios que permitam lhes permitam manter-se longos períodos de tempo, a filmar no país. Mas o baixo incentivo à Grande Produção (cash refund), que foi criado no fim de 2023, com a dotação anual até 20 milhões de euros, é considerado manifestamente insuficiente e afasta as grandes produtoras de Portugal.
Patty Jenkins coloca a tónica no tax credit e na pressão que existe para escolher um país europeu que dê cartas nessa matéria, ou melhor, bom dinheiro. “Atualmente, há ótimos tax credits em todo o mundo. Quando fiz a «Mulher-Maravilha» no Reino Unido obtive 40% de tax credit de volta [ou seja, reembolso de despesas e deduções de impostos], ou seja, cerca de 40 milhões de dólares. Não se consegue competir com isso. Quando se filma na Europa, a pressão é enorme para escolher um país que tenha um bom tax credit.”
Portugal, salienta a realizadora, “tem um bom tax credit, mas não tem dinheiro suficiente a financiá-lo. Só há cerca de dez milhões por ano para qualquer filme [referindo-se ao programa de cash rebate]. Um filme como «Mulher-Maravilha» não pode vir [para cá], pois isso não é suficiente”. Refere, a propósito, que tanto Espanha, como Itália são países apetecíveis para esse efeito, na medida em que “têm tax credit excelentes e conseguem ter vários filmes em rodagem simultaneamente”. De novo a apontar a Portugal, afirma que o país “poderia ter uma indústria de cinema fulgurante, mas é preciso financiá-la”.
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