A criação do Chega e do Iniciativa Liberal alterou o panorama da direita portuguesa, estável durante mais de quatro décadas. PSD e CDS partilharam, em regime de duopólio, a representação política da direita desde os primórdios do regime democrático, sem que, até 2019, surgissem forças partidárias que lhes disputassem eleitores e assentos na Assembleia da República.
Pela primeira vez, os partidos históricos da direita foram confrontados com o desafio da concorrência, evidenciando, porventura por falta de experiência, dificuldades na gestão destas novas circunstâncias. O PSD vê-se a braços com problemas na definição de uma política de alianças, hesitando entre uma tentadora aproximação ao Chega ou a manutenção do cordão sanitário em que o envolveu.
Os sociais-democratas, que sempre tiveram no CDS o seu parceiro natural de coligação, confrontam-se agora com a mesma dificuldade sentida pelo PS durante décadas por não conseguir estabelecer entendimentos com os partidos à sua esquerda. Já o CDS depara-se com um desafio existencial: excluído, pela primeira vez desde as eleições para a Assembleia Constituinte, da instituição parlamentar, o partido viu o seu eleitorado sugado pelos dois novos partidos.
Basta olharmos, por exemplo, para os resultados dos centristas nas eleições legislativas de 2019 e 2022 em dois concelhos, Lisboa e Cascais, e em particular para as freguesias onde os centristas habitualmente obtinham melhores votações, para se constatar tal transferência de votos.
Quais serão então os motivos deste abalo no statu quo da direita portuguesa? Não se pretende aqui apresentar uma análise aprofundada, pois o fenómeno é ainda demasiado recente e de futuro incerto para que se possam extrair conclusões sólidas e o espaço exíguo para tal. Aos motivos internos concorrerão também motivos de natureza externa ao sistema político nacional que podem ter contribuído para esta alteração, nomeadamente no caso do Chega, partido que beneficiou do crescimento nas democracias de partidos similares. Porém, numa abordagem necessariamente breve, ensaiar-se-ão algumas tentativas de resposta.
A direita e a revolução
A direita portuguesa em democracia padece de um problema genético. Nascido e crescentemente polarizado à esquerda, o processo revolucionário iniciado com o golpe militar de 25 de Abril de 1974 condicionou decisivamente a organização da direita portuguesa.
Ao invés de nascer exclusivamente da iniciativa cidadã, a direita então nascida foi aquela que os militares consentiram e promoveram. Daqui resultou que de todas as forças políticas de direita criadas nos meses imediatamente posteriores ao golpe, somente dois tiveram viabilidade: o PPD/PSD e o CDS. As demais forças políticas seriam extintas, sobretudo no rescaldo do 28 de Setembro, excepção feita ao PDC que seria, no entanto, temporariamente suspenso por suspeitas de envolvimento nos acontecimentos de 11 de Março, jamais se recompondo.
A direita que integrava as estruturas de apoio e propaganda do Estado Novo não apenas não teria espaço no contexto revolucionário como era tão clientelar quanto pouco doutrinariamente convicta, ruindo sem estrondo com o próprio regime e restando-lhe ou o silêncio ou a tentativa de integração no sistema político nascente.
Já quanto à direita nacionalista revolucionária, particularmente activa no meio universitário, crítica da abertura marcelista e que pugnara pela recuperação de uma pretensa pureza da Revolução Nacional acabaria – pelo menos parte dela – por aderir ao PSD e ao CDS e assimilar os princípios democráticos.
No que concerne a uma direita de feição neoliberal, esta seria ao tempo – a existir verdadeiramente – demasiado embrionária, escassa e inorgânica para se constituir como força política, tendo por mais em conta que a reabilitação do liberalismo a nível internacional só atingiria maior expressão na década de oitenta.
A direita sobrevivente ao processo revolucionário circunscreveu-se, assim, a estes dois partidos que representavam duas linhas reformadoras nascidas sob o patrocínio de Marcelo Caetano. O PPD/PSD era a declinação partidária dos chamados liberais, eleitos nas listas da Acção Nacional Popular (ANP) em 1969 à Assembleia Nacional e o CDS reunia parte do chamado Grupo das Quartas-feiras, assim designado por esse o dia da semana em que os seus membros, informalmente liderados por Freitas do Amaral, se reuniam para discutir política no exclusivo Turf Club, ao Chiado. Coube, deste modo, a estes dois partidos o papel de casas comuns para albergar as diferentes direitas, que se acolheram, nem sempre de forma pacífica, sob os dois tectos disponíveis.
O PSD, como grande partido político tornou-se uma frondosa árvore com muitos ramos, acolhendo desde republicanos da velha guarda a antigos quadros da ANP. Como partido catch all, como designam os estudiosos da matéria partidos com estas características, o PSD surge ideologicamente pouco definido para maximizar a sua eficácia eleitoral e captar quadros e dirigentes num largo espectro.
O CDS, por seu turno, embora mais coeso ideologicamente, também acolhia várias sensibilidades, como democratas-cristãos e conservadores, além de, a nível das bases e do eleitorado, a franja da direita vencida mas não convencida pelo processo revolucionário. Cedo se lhes juntariam alguns dos antigos nacionalistas revolucionários que se constituiriam como os representantes dos ideais neoliberais.
Percurso da direita no pós-revolução
Findo o processo revolucionário e os seus constrangimentos, que forçaram os partidos de direita a conceber programas com matizes de esquerda, PSD e CDS vão-se reposicionando politicamente. E seria na sequência desse processo de redefinição que os conflitos, mais ou menos acrisolados, vão surgindo entre os diferentes ramos das respectivas famílias.
No PSD ocorre o choque entre Sá Carneiro, que defendia um posicionamento de centro-direita para o partido, e os chamados “Inadiáveis”, que sustentavam uma orientação de centro-esquerda, precipitando uma crise de larga escala. No CDS, por seu turno, começava a esboçar-se, logo no III Congresso, em 1978, uma corrente de feição liberal e assumidamente de direita, protagonizada por Francisco Lucas Pires, oriundo do já referido nacionalismo revolucionário.
As clivagens internas nos dois partidos terão sido atenuadas pela sua ascensão ao poder, que tem o condão de apaziguar conflitos. Findos os três governos da AD, em 1983, a situação altera-se. O PSD é empurrado pelas circunstâncias adversas da economia para uma aliança circunstancial à sua esquerda – o Bloco Central – e no CDS a corrente liberal de Lucas Pires alcança a liderança, derrotando a tendência centrista de inspiração democrata-cristã.
Com o fim do Bloco Central, o PSD caminha para claramente para o centro-direita com Cavaco Silva, em linha com as pretensões de Sá Carneiro. Com os seus governos, serão criadas condições para o renascimento da iniciativa privada, sendo ampliados os sectores em que seria admitida, de que é exemplo a televisão. O país abandonava a Constituição económica socialista e abraçava, enfim, a economia de mercado.
Tal rumo do PSD punha em cheque o CDS liberal de Lucas Pires, por redundância, criando uma crise identitária no partido. Escassos anos mais tarde, consequência também de uma orientação mais europeísta que o PSD entretanto assumiu, ascendeu à chefia dos centristas um sector mais à direita e céptico em relação ao aprofundamento da integração europeia. A liderança de Manuel Monteiro conduz ao afastamento dos históricos do partido, de Freitas do Amaral a Lucas Pires, convictos defensores do projecto europeu.
A direita no século XXI
Findos os governos de Cavaco Silva, ao PSD estaria reservada uma longa travessia no deserto da oposição, somente interrompida, efemeramente, entre 2002 e 2005. O regresso ao poder dá-se em 2011, em momento de crise económica, com Pedro Passos Coelho. Representante de um sector influenciado pelas ideias neoliberais, Passos Coelho ambicionou uma revisão da Lei Fundamental que previa a revisão da Constituição social e foi um executante rigoroso das medidas de austeridade, que entendia não apenas como uma imposição, mas como uma receita necessária e adequada. Tais pontos de vista alarmaram o ramo social-democrata desta família política, que tornaram públicas as suas críticas.
No que ao CDS diz respeito, o longo consulado de Paulo Portas tornou o partido híbrido, movido sobretudo pelo tacticismo. Abandonou o eurocepticismo para se tornar “eurocalmo” e foi progressivamente abandonando o conservadorismo nas questões de costumes, opção um tanto anómala para um partido de inspiração cristã e de eleitorado católico, mas destinada a tornar o CDS mais apelativo a um eleitorado mais jovem e urbano.
Chegados a 2019, PSD e CDS encontram-se novamente em crise. O primeiro, dividido entre os “passistas” e os sociais-democratas; o segundo, entre “portistas” e sociais-conservadores, entre os quais uns escassos democratas-cristãos que ainda subsistem.
É neste contexto que nascem os dois novos partidos da direita. O Chega torna-se apelativo à direita musculada, que se mantivera silenciosa e disciplinada sobretudo no CDS. O Iniciativa Liberal, dando, enfim, dignidade de partido aos neoliberais, até então divididos entre o PSD e o CDS.
Com o aparecimento destas forças políticas, deu-se início de uma separação de águas na direita, que poderá ser conjuntural ou não, o futuro o dirá, mas que é consequência das particularidades do nascimento da direita em democracia. Diferentes ramos da família da direita parecem estar a criar formas autónomas de representação. Quanto aos dois partidos históricos restam-lhes duas possibilidades: ou conseguem reconstituir os equilíbrios internos sobre os quais se erigiram, mas que os manterão propensos a crises, ou procuram um espaço ideologicamente mais definido, correndo o risco – particularmente grande no caso do PSD – de não recuperarem o eleitorado entretanto conquistado pelos seus novos concorrentes.
É um desafio de monta, que comportará riscos, mas o risco é da essência da democracia, regime dinâmico por definição. Vai já longe a tutela militar que, ironicamente, conferiu ao PSD e ao CDS a protecção contra a concorrência. Talvez seja este o tempo de ir à luta no mercado aberto da política.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.