A expressão “o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita” podia aplicar-se ao acordo dos minerais [daqui em diante o Acordo] assinado em Washington, a 30 de abril de 2025, entre altos dignitários norte-americanos e ucranianos, e posteriormente ratificado pelo parlamento ucraniano, que tem por objetivo criar um fundo de investimento para a reconstrução da Ucrânia. A saga em redor deste Acordo é longa, com o ponto alto na reunião de Trump com Zelensky, na Casa Branca, bem conhecida de todos. Apesar da insistência ucraniana em associar a este Acordo garantias de segurança norte-americanas, essa aspiração não se concretizou.

Há ainda alguns aspetos desse acordo por apurar. Compreende três documentos, mas só se conhece o que foi assinado, desconhecendo-se o conteúdo dos outros dois, pois o governo ucraniano não os facultou aos deputados. Alguns deles alertaram para o facto de a verdadeira substância do Acordo, a forma como irá funcionar, quem o controla e quais os compromissos legais a que a Ucrânia fica vinculada poder encontrar-se nos dois documentos não divulgados. Alguns deputados manifestaram incómodo pelo facto de estarem a ser pressionados para ratificarem uma versão incompleta do Acordo, quando poderão estar em causa sérias violações da soberania nacional.

As tergiversações norte-americanas também são conhecidas. Afinal, o objetivo do acordo já não é ressarcir os EUA das volumosas quantias gastas com o apoio à Ucrânia, anteriores à sua assinatura. Este acontecimento foi considerado uma vitória diplomática de Kiev. Resta saber se será mesmo assim, ou se não haverá algo obscuro que possa amarrar a Ucrânia, no longo prazo, a obrigações que foram negociadas sem transparência. As rápidas e sucessivas alterações da posição americana sugerem a possível camuflagem de intenções, em que se procurou desviar as atenções daquilo que era realmente pretendido.

O acordo

Talvez precipitadamente, alguns analistas associaram-se apressadamente à narrativa da vitória ucraniana. Sendo o quinto acordo assinado por Kiev com os EUA desde 1999 (2008, 2017, 2011, 2021), de âmbito semelhante, restam poucas dúvidas das implicações que terá na soberania e independência do Estado ucraniano, já muito coartadas. Por exemplo, cerca de 40% da terra arável ucraniana encontra-se nas mãos de empresas estrangeiras, em particular americanas e chinesas.

A relação entre os signatários do Acordo é manifestamente assimétrica, com benefício da posição americana. As empresas ucranianas são excluídas dos projetos que se venham a contratar, nomeadamente empresas estatais como a Ukrnafta e a Energoatom. Kiev não será remunerada da distribuição de lucros do Fundo se violar os termos do acordo, e os gestores ucranianos perderão todos os direitos de voto no Conselho e nos comités relevantes do Fundo, gerido por um Conselho com igual número de representantes da Ucrânia e dos Estados Unidos, mas em que os principais comités ficarão nas mãos dos gestores americanos.

Ao terem as empresas norte-americanas direito de preferência sobre os novos projetos que vierem a ser propostos a Kiev, os acordos já assinados pela Ucrânia com o Reino Unido e a União Europeia ficam comprometidos. Só se investidores americanos – os primeiros a terem acesso às informações sobre projetos mineiros e de infraestruturas – não manifestarem interesse nos projetos apresentados, é que outros investidores poderão avançar com a sua implementação.

Não é crível que os EUA disponham de novas informações relativamente ao que já se sabe sobre os depósitos de minérios em território ucraniano proporcionado pelos estudos geológicos da era soviética e que, pelos vistos, não terá motivado os oligarcas ucranianos e empresas estrangeiras a explorar nas mais de três décadas que nos separam da independência.

O argumento das “terras raras” inicialmente aduzido para justificar um “negócio da China” é falacioso. É sobejamente conhecido que a Ucrânia não é fonte de nenhum dos 17 metais que compõem a lista de “terras raras”. Não serão os depósitos ucranianos em “terras raras” que vão dar resposta às necessidades da indústria norte-americana nesta matéria. Ao que se deve juntar a viabilidade económica destas explorações. Segundo o Washington Post “levará pelo menos uma década para que os cobiçados recursos possam trazer benefícios às cadeias de abastecimento dos EUA.”

Como o Acordo se refere exclusivamente a minérios não explorados, a rentabilidade económica da sua exploração tem obrigatoriamente de incluir a sua mineração, o que requer um grande investimento cujo retorno económico não é garantido. O mesmo se coloca relativamente ao petróleo e ao gás, com reservas de pouca expressão, cuja exploração as torna pouco atrativas para empresas que podem investir noutros locais com um menor risco de investimento e níveis de retorno mais elevados.

A exploração de titânio, grafite e lítio poderá valer a pena, embora as reservas existentes não sejam muito significativas, o que não as torna particularmente rentáveis. Os depósitos mais promissores destes minerais encontram-se em território ocupado pela Rússia. Comparativamente com outros países, as reservas ucranianas são modestas. A instabilidade política e securitária da região é um desincentivo ao investimento. Muitas das reservas de gás encontram-se em zona de conflito, onde as empresas estariam relutantes em investir, mesmo na eventualidade de um acordo de paz.

Não deixa de ser importante sublinhar, que a Corporação Internacional de Financiamento do Desenvolvimento dos EUA (DFC), um parceiro do Fundo, mantém unilateralmente a autoridade sobre as decisões de investimento, a resolução de litígios e as alterações aos termos da parceria. O estatuto de parceiro menor, apesar da representação nominal equitativa no conselho de administração (3 de 6 lugares), não confere à Ucrânia poder de veto. Kiev assume responsabilidade ilimitada pelas perdas, incluindo disputas legais, flutuações cambiais e reclamações de terceiros, enquanto as obrigações dos EUA se limitam a consultas não vinculativas. Perante isto e muito mais, seria necessária muito boa-vontade para considerar este acordo uma vitória ucraniana.

A posição da Administração Americana

O facto de a Administração Trump se encontrar ciente destas circunstâncias, sumariamente expostas, leva-nos a reequacionar os verdadeiros motivos que terão levado Washington a um tamanho empenho neste acordo. No curto e no médio prazo, os benefícios económicos para os EUA advirão mais da venda de armamento norte-americano do que da futura exploração de recursos a descobrir e a explorar. Cada uma das partes contribuiu para o fundo com 50%, sendo o contributo norte-americano feito em géneros, leia-se armamento.

Mas sobrepor-se-ão os benefícios económicos aos geopolíticos? Sob a capa da criação de fundos para a reconstrução ucraniana, este acordo garante a Washington uma presença norte-americana permanente na Ucrânia, numa fronteira adjacente à Rússia, à semelhança daquilo que anteriores Administrações fizeram na Polónia, países Bálticos e Finlândia (onde detém autorização de acesso a 15 bases militares).

Ao descair-se e apresentar o Acordo como um fator de pressão sobre a Rússia, o Secretário do Tesouro norte-americano Scott Bessent, o mesmo que considera Vladimir Putin um criminoso de guerra, deixou cair a máscara sobre o verdadeiro objetivo do Acordo, sugerindo aquilo de que desconfiávamos. Mais do que as questões económicas, o grande empenho dos EUA no Acordo é de natureza geopolítica. Subjacente, embora não formalmente admitido por Washington, encontra-se um compromisso alargado com a defesa de Kiev, mesmo que isso não envolva forças militares norte-americanas, pelo menos por agora.

Não é possível nesta altura prever quando e quanto dinheiro os EUA receberão de volta, mas isso não foi determinante. Trump presta-se a fazer, de modo subtil, aquilo que Biden não foi capaz.