Entre descrições de armas que não fazemos qualquer ideia do que sejam, referências a regiões da Europa de que nunca tínhamos ouvido falar, imagens de cidades destruídas, cidades que infelizmente não conhecíamos no seu esplendor da vida, andamos, há quatro meses, a viver entre a comoção inerente à condição humana e os relatos do quotidiano.
A ouvir e a ver quase todos os oficiais superiores e oficiais generais reservistas que integram as exauridas Forças Armadas Portuguesas e, é o que me preocupa, a pensar pouco para lá do horizonte de curto prazo.
Este primeiro semestre de 2022 fica marcado por duas imagens reveladoras e com vocação de perenidade.
As imagens de destruição maciça e sistemática das cidades, sinal que a doutrina das forças armadas soviéticas se manteve e manterá na Federação Russa. A imagem da kremliniana mesa de seis metros de comprido que teve como único objectivo humilhar os que lá se aceitaram sentar.
Teremos já hoje muitos milhares de mortos (os ambulantes fornos crematórios soviéticos nunca nos deixarão saber quantos); temos fome, miséria, doença, destruição onde há seis meses havia paz.
Mas a guerra da Rússia à Ucrânia, bem vistas as coisas, é muito mais do que isso, se é que é isso.
Os Russos e os Ucranianos são as vítimas imediatas e todos, sobretudo os mais pobres, somos vítimas mediatas. Acontece que, como disse Joe Biden no final de Maio, “as relações internacionais estão a ser redesenhadas e a oposição não é mais entre a Rússia e o Ocidente, mas entre a autocracia e a democracia”.
Ou, se quisermos, e num contexto diferente, talvez valha a pena ouvir Bernard-Henri Levy (“L’Express”, 27 de Janeiro de 2022): “A clivagem entre pro e anti Putin é bem mais importante que a clivagem Esquerda/Direita”. E, mais à frente, à pergunta “Como avalia a benevolência de Jean-Luc Mélenchon, de Eric Zemmour ou Marine Le Pen em relação a Putin?” responde de forma lapidar: “No mínimo irresponsável. E, em boa verdade, infame”. E, mais à frente, adianta “se nós perdemos os nossos valores, perdemos o nosso crédito moral”.
Bem sei que todos os dias, ao ligarmos as televisões ficamos chocados. Desde logo porque nenhum valor se pode sobrepor ao da preservação da vida humana.
Mas importa ver para lá das imagens, para lá do imediato. E aí o que está em jogo é em que tipo de sociedade queremos viver. Queremos ser homens livres ou súbditos? Preferimos a autocracia ou a democracia? Somos tributários da tradição iluminista europeia ou aceitamos as trevas?
Vamos continuar a ser os porta-estandartes dos princípios consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ou tudo aceitamos em nome de uma realpolitik, sem alma nem valores?
Para que outras Ucrânias não aconteçam!
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.