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ONU quer reforçar o multilateralismo num mundo cada vez mais unilateral

Uma desoladora Assembleia Geral das Nações Unidas, a 75ª da sua história, reflete o mundo pandémico em que o planeta se vai afundando. Mas ainda há esperança, disse António Guterres.
  • António Guterres
22 Setembro 2020, 17h20

‘O futuro que queremos, as Nações Unidas de que precisamos: reafirmar o nosso compromisso coletivo com o multilateralismo’. É este o mote da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas que teve esta terça-feira início em Nova Iorque. Mas não muito: o distrito de Turtle Bay, onde fica a sede da ONU, costuma a meio de setembro ser um corrupio de diplomatas, chefes de Estado e de governo e todos os séquitos de que se rodeiam.

Nada disso sucede desta vez: não faria qualquer sentido que 193 países, mais coisa menos coisa, enviassem delegações para Nova Iorque nesta fase em que a pandemia de Covid-19 mais ou menos descontrolada. Mas, para a ONU, o verdadeiro problema é que, como disseram já vários responsáveis – entre eles o próprio secretário geral, António Guterres – a pandemia está a dar cabo do multilateralismo.

E se não chegasse o facto de os representantes nacionais não poderem manter conversas à margem dos trabalhos da Assembleia Geral, o certo é que cada país está confinado sobre si próprio, as relações comerciais estão no seu grau mais baixo em muitos anos e cada Estado pondera a forma como unilateralmente poderá responder a um mundo em relação ao qual sabe apenas ligeiramente mais que quase nada.

“A pandemia da Covid-19 deixou a descoberto as fragilidades do mundo. Só podemos enfrentá-las juntos”, disse António Guterres no seu discurso de abertura, tentando dar a entender que o unilateralismo é a pior resposta para a fase difícil em que o mundo se encontra. Mas o secretário-geral sabe que o otimismo é apenas uma capa para essas fragilidades – mesmo tendo ensaiado, como lhe competia, um discurso de esperança, confiança e resiliência.

Desde que a pandemia teve início, as restantes fragilidades – a dos refugiados, dos deslocados, das guerras regionais, dos conflitos étnicos, dos problemas climatéricos, etc., etc., etc. – não deram nenhum descanso às populações, tal como Guterres lembrou na sua intervenção e como facilmente se constata. Ao contrário, novos conflitos surgiram – sendo que o mais pequeno deles não é certamente o que se vive no interior da Bielorrússia.

Nestes 75 anos de ONU, os seus corredores estão desertos e as salas de reuniões são apenas virtuais. Até o presidente norte-americano – que mora logo ali ao lado, a apenas meia hora de distância se se meter num avião – desistiu de aparecer no edifício, e remeteu em sua substituição um vídeo preparado com antecedência. Xi Jinping, Vladimir Putin ou Emmanuel Macron farão outro tanto. No final, ao multilateralismo, todos eles disseram nada.

A ausência de Trump terá sido com certeza aplaudida pelo seu adversário nas presidenciais, o democrata Joe Biden, que não teria grandes dúvidas sobre o discurso que Trump faria presencialmente: qualquer coisa em torno da defesa do unilateralismo, que servisse principalmente para consumo interno.

Até o primeiro-ministro português, António Guterres, usou uma mensagem gravada para participar nos trabalhos – que começaram na semana passada ao nível das equipas diplomáticas – onde defende os princípios de uma ordem mundial fundada no direito internacional e na igualdade entre Estados soberanos.

A Assembleia Geral abriu com a intervenção de Guterres, seguida, pela do presidente da Assembleia Geral, Volkan Bozkir, que deu início ao debate geral propriamente dito e remeteu a palavra ao primeiro orador, o presidente Jair Bolsonaro, do Brasil, como é costume. Seguiu-se-lhe o país anfitrião, os Estados Unidos.

Bolsonaro disse que “desde o princípio, alertei, no meu País, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade”. Sobre a pandemia, está disseminada por todo o lado a forma como o presidente brasileiro lidou com o assunto. Mas sobre a parte económica do combate, um tema menos ‘sexy’, Bolsonaro lembrou que o seu governo “concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente mil dólares para 65 milhões de pessoas, o maior programa de assistência aos mais pobres no Brasil e talvez um dos maiores do mundo; destinou mais de 100 bilhões de dólares para ações de saúde, socorro a pequenas e microempresas, assim como compensou a perda de arrecadação dos estados e municípios; assistiu a mais de 200 mil famílias indígenas com produtos alimentícios e prevenção à Covid; estimulou, ouvindo profissionais de saúde, o tratamento precoce da doença; destinou 400 milhões de dólares para pesquisa, desenvolvimento e produção da vacina de Oxford no Brasil”.

Bozkir disse que existe um número recorde de chefes de Estado inscritos para participarem. Ao todo, são cerca de 125 chefes de Estado e 57 chefes de governo. Como de costume, o Brasil é o primeiro Estado-membro a discursar, seguido dos Estados Unidos, o país anfitrião.

Além dos discursos no hall da Assembleia Geral, uma série de eventos acontecerão nas próximas semanas, mas todos de forma virtual. A Cimeira sobre Biodiversidade terá lugar a 30 de setembro. Em 1 de outubro, acontece a reunião de alto nível no 25º aniversário da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher. O último dia, 2 de outubro, conta com a reunião plenária de alto nível para comemorar e promover o Dia Internacional para a Eliminação Total das Armas Nucleares.

Esta segunda-feira, a ONU marcou o seu 75º aniversário com a aprovação, por consenso, de uma nova declaração de apoio à missão da ONU. Segundo o texto, “não há nenhuma outra organização global com a legitimidade, poder de convocação e impacto normativo das Nações Unidas.” Os Estados-membros concluem dizendo que “nenhuma outra organização global dá esperança a tantas pessoas.”

No encontro, também foram divulgados os resultados da consulta global sobre os desafios e o futuro da organização. Até este 21 de setembro, mais de um milhão de pessoas de todo o globo participaram. Mais de 87% dos entrevistados acredita que a cooperação global é vital para lidar com os desafios atuais, e que a pandemia tornou a cooperação internacional mais urgente. Olhando para o futuro, 74% veem a organização como “essencial” para enfrentar esses desafios. Cada um em sua casa.

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