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Os Direitos Humanos e os perigos da banalização do mal

Atualmente, a vivermos tempos sem precedentes provocados pela pandemia de covid-19, e face ao recrudescimento do populismo e das posições extremadas, a UNESCO solicitou aos governos do mundo que, particularmente este ano, se mobilizassem em iniciativas de reforço da memória, no combate ao esquecimento, negacionismo e antissemitismo, entre outras formas de segregação e violação dos Direitos Humanos.
8 Abril 2021, 07h15

No passado dia 27 de janeiro de 2021, assinalou-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, recordando a data da libertação dos sobreviventes de Auschwitz, na Polónia. Há 76 anos o mundo passou a conhecer a verdadeira dimensão das atrocidades do holocausto, provocada pelo regime nazi.

Desde então, os povos mobilizaram-se na defesa dos Direitos Humanos, onde as teorias dos direitos naturais de John Locke e o trabalho do advogado Raphael Lemkin, que cunhou o termo “genocídio”; e, ainda, de Hersch Zvi Lauterpacht, Jacob Blaustein, Maurice Perlzweig, Jacob Robinson e Peter Solomon Benenson foram relevantes, não só para a sua conceção, mas também asserção.

A luta pela universalidade dos Direitos Humanos foi preponderante na conceção de dois convénios internacionais, um sobre os direitos civis e políticos (direito à vida, à propriedade privada, liberdade de pensamento, entre outros) e outro sobre direitos económicos, sociais e culturais (direitos ao trabalho, à educação, à saúde, nomeadamente). Ambos foram incluídos na Declaração Universal de Direitos do Homem das Nações Unidas, em 1948, base da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em 1950; e, posteriormente, da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em 1981, que adicionou o direito à auto-determinação.

Seguiu-se a institucionalização da preocupação de outros problemas, como a situação das mulheres, os direitos das crianças, a discriminação racial e a liberdade de informação. Em novembro de 1959, a Declaração dos Direitos da Criança foi adotada pelas Nações Unidas, por unanimidade.

O processo de afirmação e reconhecimento dos Direitos Humanos viria a consolidar-se na Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, 1993. Nesta data, instituiu-se a preocupação legítima de toda a comunidade internacional com a violação de Direitos Humanos, em todos os lugares e a qualquer momento.

Atualmente, a vivermos tempos sem precedentes provocados pela pandemia de covid-19, e face ao recrudescimento do populismo e das posições extremadas, a UNESCO solicitou aos governos do mundo que, particularmente este ano, se mobilizassem em iniciativas de reforço da memória, no combate ao esquecimento, negacionismo e antissemitismo, entre outras formas de segregação e violação dos Direitos Humanos.

Com efeito, volvidos 76 anos, em pleno século XXI, e não obstante as lições da história, os Direitos Humanos continuam seriamente ameaçados, não apenas pelo contexto, mas especialmente por conta de uma certa degradação do próprio homem e da sua propensão para degenerar. De facto, umas vezes por medo, outras na esperança de concretização das suas aspirações pessoais, o Homem tende a desresponsabilizar-se, centrando-se nos bodes expiatórios. i.e., responsabilizando inocentes pela culpa que desconheciam e, de facto, não têm. De resto, há muito que Hobbes afirmou que o medo e a esperança são os instrumentos mais eficazes no controlo das pessoas.

Destarte, o mal não é algo transcendente ao homem. Muito pelo contrário, o mal parece residir nas pessoas, é comum, generalizou-se e está por toda a parte. Por tudo isto, e ao invés do que se poderia supor, são mais aqueles que podem praticar o mal do que os outros, tornando o fenómeno banal.

O conceito de banalidade do mal surgiu por Hannah Arendt, a propósito do julgamento de Adolf Eichmann, um adepto do nazismo capturado pela Mossad na Argentina, anos mais tarde, onde se havia refugiado logo após a derrota nazi na Segunda Guerra Mundial. Note-se que, Adolf Eichmann foi responsável pela logística das deportações em massa dos judeus para os guetos e campos de extermínio das zonas ocupadas pelos alemães no Leste Europeu durante a Segunda Guerra Mundial.

Hanna Arendt analisou o comportamento de Adolf Eichmann ao longo de todo o processo de julgamento, caracterizando-o como sendo um homem perfeitamente comum, normal, passivo e sem iniciativa. Ou seja, na falta de uma ordem, ou regulamento, que o orientasse, Eichmann sentia-se totalmente perdido, sem saber muito bem o que fazer.

Desde logo, Hannah Arendt percebeu que Eichmann usava um vocabulário técnico administrativo para se expressar. Normalmente, socorria-se de palavras como economia, rotina, administração e evacuação, imagine-se para referir-se aos campos de concentração, às execuções e ao extermínio de seres humanos, como se de um trabalho normal se tratasse. Enfim, um burocrata que obedecia ao comando de uma qualquer voz imperativa que lhe dissesse o que fazer. À vista disto, Hannah Arendt refere-se a Eichmann como inapto para pensar por si e para viver independente de um amo, limitando-se a servir, sem questionar. Sobretudo, era incapaz de se colocar na perspetiva de outra pessoa e refletir criticamente sobre os seus atos e respetivas consequências.

Ademais, Hannah Arendt referiu estar na presença de um fiel cumpridor de ordens, seguidor, à risca, das instruções superiores, provenientes do Estado nazista; e, em última instância, do seu perturbado líder Adolf Hitler.

Nesta aceção, os atos de maldade cometidos por Adolf Eichmann resultavam da irreflexão e da total incapacidade para pensar e discorrer sobre o que quer que fosse, muito menos com profundidade e abstração. Não obstante, tinha plena consciência das coisas que fazia e das atrocidades cometidas pelo regime nazi, mas ainda assim colaborava fazendo a sua parte.

Na prática, para Eichmann não importava a moral, a ética ou a honra, antes o seu sucesso pessoal e a ascensão na carreira profissional, enquanto trabalhador do regime. Incrível, como aquilo que para os judeus e outras minorias era o terror do Holocausto, para Eichmann significava o sucesso no que referia ser o seu trabalho.

Importa referir que Eichmann não foi um caso isolado. Na verdade, os principais acusados do julgamento de Nuremberg comportaram-se de forma semelhante, alegando o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente.

Ora, isto remete-nos para questões mais complexas de direito e justiça e para o positivismo ideológico que vigorou na Alemanha naquele período. O regime nazi estabeleceu um quadro legal que dava cobertura às suas práticas flagiciosas, considerando apenas a norma jurídica como obrigatória a despeito do seu conteúdo. i.e., desprovido de qualquer propriedade axiológica, assente em leis de estrutura puramente formal.

Diante disso, o mal de Eichmann não emanava, afinal, de algo sobrenatural ou de um ser excecionalmente dotado, ainda que pudesse usar para mal, mas sim de um ser humano normalíssimo, medíocre até, utilizado pelo regime como um meio e não como um fim. Infelizmente, este é um mal contemporâneo. Um mal muitas vezes embuçado na sociedade, podendo, inclusive, advir de qualquer pessoa normal, com família, contribuinte, que celebra com amigos e familiares e, até, é bem capaz de professar uma religião. Enfim, um mal que, não sendo infinito, tem proporções alarmantes e pode ser utilizado pelas diferentes formas de populismo.

Por tudo isto, são, portanto, o normal e a incapacidade de pensar que se deverá combater. Por fim, não se trata de um problema difícil de detetar, mas é, de facto, um desafio incomensurável. Portugal, infelizmente, também não está livre disso.

Referências:

Arendt, H. (1964). Eichmann in Jerusalem: a report on the banality of evil. Rev. and enl. ed. New York: Viking Press.

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