1. Estado de emergência em estilo “português suave”.

O decreto do Presidente que declara o estado de emergência já era relativamente suave. O Governo resolveu suavizar ainda mais um pouco. Afinal, não ficaria bem a um governo de esquerda suspender liberdades a sério mesmo à beira do 25 de abril — data que, diga-se, alguns ainda não se conformaram em não comemorar este ano.

Este estado de emergência dá para ir ao banco, tratar dos seguros, dar uma corridinha ou uma volta de bicicleta, passear o cão e simplesmente sair à rua para fruir momentos de ar livre (agora que o ar até está mais puro).

E também dá para jogar no euromilhões, já que os estabelecimentos que exploram jogos sociais foram considerados “serviços essenciais”. Percebe-se a intenção de preservar os cofres da Santa Casa da Misericórdia, mas é uma aposta que pode sair demasiado cara.

Só não pode estar na rua quem, manifestamente, não tem nada para fazer na rua. É verdade que ninguém gosta de ser privado dos seus direitos, mas é importante não esquecer que os mortos não têm direitos.

2. Quem diria que um vírus nos iria trazer de volta à eutanásia.

Parece que na Holanda, pioneira na legalização da eutanásia, a generalização desta prática não se deve apenas a um profundo respeito pela liberdade individual e pelo direito de cada um a morrer com dignidade.

A acreditar no que por aí se tem dito, deve-se também à convicção de que o melhor que os velhos têm a fazer é mesmo morrer, de preferência sem dar muito transtorno e despesa. Deste ponto de vista, este vírus até evita o trabalho de enviar para todos os cidadãos acima das 70 primaveras uma pilulazinha letal, para estes engoliram logo que se sentirem cansados de viver.

Atenção, pois, aos defensores da causa da eutanásia. Nem tudo o que vem da Holanda se recomenda. Aliás, um país que tresanda a erva em cada esquina e que acha normal pôr prostitutas seminuas em montras dificilmente poderá aspirar a ser um farol da civilização ocidental.

O maior contributo que os holandeses deram para o progresso da humanidade foi mesmo a descoberta das sociedades por ações e da bolsa de valores. Capitalismo em estado puro, portanto, mas isso já foi há vários séculos.

3. Marcelo terá convencido Centeno a ficar.

Impossível não pensar na mitologia grega e na condenação que os deuses (aqui personificados por Marcelo) impuseram a Sísifo (o Ronaldo das Finanças) pelas suas ousadias: empurrar uma enorme pedra, montanha acima, até ao topo, e vê-la rolar, encosta abaixo, até à base — e recomeçar de novo, para o resto da eternidade.

Cinco anos a penar, empurrando o orçamento de Estado até ao menor défice da democracia portuguesa e, em escassas semanas, de volta ao acampamento zero e, possivelmente, a um dos piores défices das últimas décadas. Ninguém merece tal sorte. Azar dos Távoras. O mito de Sísifo foi glosado por Camus para evidenciar o absurdo de muitas empresas humanas, penosas, repetitivas e, no final, vazias de sentido.

O poema que Torga dedicou ao mesmo personagem mitológico é menos deprimente. Mas exaltantes só mesmo os versos de Kipling: “If you can make one head of all your winnings, And risk it on one turn of pitch-and-toss, And lose, and start again at your beginnings, And never breathe a word about your loss; (…), Yours is the Earth and everything that’s in it, And — which is more — you’ll be a Man, my son!”.