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Os riscos da proposta de lei de alteração do Código dos Contratos Públicos

Não querendo ir tão longe nas críticas que vêm sendo feitas a esta proposta – nomeadamente, do risco de cartelização e de aumento da corrupção que a solução envolve –, é notória a opção deliberada pela restrição da concorrência.
13 Outubro 2020, 09h27

Encontra-se neste momento em discussão na Assembleia da República uma proposta com uma extensa alteração ao Código dos Contratos Públicos (CCP) – é já a 12.ª alteração ao Código no espaço de 12 anos!

Relembre-se, a este propósito, que o CCP foi já alvo de uma extensa modificação em 2017, a propósito da transposição para o ordenamento português das Directivas Europeias da contratação pública de 2014, e que, em determinados aspectos, não foi nada feliz.

A alteração agora em discussão, conforme foi anunciado pelo Governo, visa simplificar, desburocratizar e flexibilizar os procedimentos de contratação pública, aproveitando também para corrigir alguns pontos menos positivos que resultaram essencialmente da referida alteração de 2017.

Ora, apesar das boas intenções do Governo, a verdade é que não me parece que tal objectivo seja convenientemente atingido com o conjunto de modificações agora proposto.

O primeiro ponto que me parece passível de crítica na proposta de alteração diz respeito à criação de um regime excepcional de contratação – em derrogação das regras de formação de contratos da Parte II do CCP – em determinadas áreas prioritárias, como é o caso dos contratos que tenham por objecto a execução de projectos cofinanciados por fundos europeus, dos contratos que tenham em vista a promoção da habitação pública ou de custos controlados ou dos contratos em matéria de tecnologias de informação e conhecimento.

Para todos estes contratos, o que a proposta de lei prevê é que, quando o respectivo valor fique abaixo dos limiares de aplicação das Directivas Comunitárias da contratação pública, os mesmos possam ser adjudicados por recurso a um procedimento de consulta prévia a cinco entidades, em detrimento do regime regra do concurso público (ou limitado) previsto como regra no CCP. Com esta alteração, por exemplo, uma empreitada de obra pública financiada com preço base inferior a € 5.350.000,00, ou uma prestação de serviços informáticos com preço base inferior a € 214.000,00 poderão passar a ser adjudicados através de uma consulta prévia.

Não querendo ir tão longe nas críticas que vêm sendo feitas a esta proposta – nomeadamente, do risco de cartelização e de aumento da corrupção que a solução envolve –, é notória a opção deliberada pela restrição da concorrência, dado que, atendendo aos valores em causa, serão mesmo muitos os contratos que passarão a estar sujeitos a procedimentos com um grau de concorrência e publicidade manifestamente inferior àquele que é assegurado através de um concurso público, transformando-se assim a excepção numa regra.

Isto, sem prejuízo de entender que os actuais valores aplicáveis à escolha do procedimento de ajuste directo e à escolha do procedimento de consulta prévia a mais do que uma entidade – e que, note-se, foram objecto de uma redução acentuada na última alteração ao CCP em 2017 (o ajuste directo passou a ser possível apenas para contratos de aquisição de bens e serviços com valor até € 20.000,00 e de empreitadas com valor até € 30.000,00) –, por comparação com os limiares europeus, se encontram bastante desajustados e que, efectivamente, poderiam ser objecto de correção.

Outro aspecto que me parece bastante negativo pelos problemas que poderá vir a criar é a alteração pela qual, em matéria de empreitadas de obras públicas, deixa de ser excepcional a possibilidade de recurso à modalidade concepção-construção, em que a responsabilidade pela elaboração do projecto é do empreiteiro. Com esta alteração, as entidades adjudicantes vão poder optar indiscriminadamente por lançar procedimentos de contratação sem projecto previamente aprovado, remetendo essa tarefa ao empreiteiro, para a fase pós-adjudicação já em sede de execução do contrato.

Sabendo-se que o recurso a esta modalidade se justifica primordialmente para certo tipo de projectos cuja complexidade técnica ou especialização o justifiquem, não me parece adequado transformar esta modalidade numa opção perfeitamente a par dos concursos com projecto elaborado pelo dono da obra.

Além disso, diz-nos a experiência do passado que esta solução vai trazer maior litigância no âmbito da execução dos contratos de empreitada. Na verdade, é preciso não esquecer que, de acordo com as regras do CCP (nomeadamente, o n.º 5 do seu artigo 43.º), há um conjunto de elementos que devem acompanhar obrigatoriamente o projecto – como é o caso, por exemplo, dos estudos geológicos e geotécnicos – e que a Jurisprudência Administrativa sempre entendeu deverem ser fornecidos pelo dono da obra nas peças do procedimento, mesmo nos casos das empreitadas na modalidade concepção-construção. Na falta desses elementos, sempre haverá espaço para o empreiteiro vir reclamar custos acrescidos por insuficiências do seu próprio projecto.

Também não se compreende qual o verdadeiro benefício decorrente da possibilidade de, em concursos limitados com prévia qualificação de empreitadas, o procedimento poder ser lançado sem projecto, sendo o mesmo completado e apresentado após a qualificação dos concorrentes. Então em obras mais complexas em que é necessário qualificar concorrentes pelas suas particulares capacidades do ponto de vista técnico, não parecer de facto fazer qualquer sentido lançar um procedimento sem se conhecer o projecto. Ainda para mais porque ninguém pode garantir que após conhecimento do projecto os concorrentes qualificados terão ainda interesse em candidatar-se a executá-lo ou mesmo que terão condições para o fazer.

Como último exemplo, destaco ainda a proposta de alteração no sentido de permitir que, em determinadas circunstâncias, as entidades adjudicantes possam excepcionalmente adjudicar um contrato no caso de exclusão de todas as propostas, de entre as propostas que tenham sido excluídas por ultrapassagem do preço base.

Esta solução, na verdade, poderá não se conformar com a imposição das Directivas Comunitárias da contratação pública de adopção do critério da proposta economicamente mais vantajosa, nos casos em que é seguida a modalidade “Multifactor”.

Estes são alguns dos aspectos que me parecem menos felizes na proposta de alteração do CCP e que, na minha óptica, devem ser objecto de reponderação.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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