A Res Digitales é autónoma, pelo que não carece de nenhum processo de custódia para garantir a execução das regras de direito que contém. Para que tal seja possível, a Res Digitales vai ter de poder identificar juridicamente os intervenientes segundo as regras da lei de forma totalmente autónoma, sendo este o tema deste segundo artigo da série.

As DLT são manipuladas através de token, que é um tipo de identificação criptográfica e pseudoanónima na sua essência. Tal como já discutimos aqui, o ordenamento jurídico carece, para já, de guardiões (em inglês, custodian) para garantir o cumprimento da lei, os quais têm de incluir, quando necessário, a identificação das pessoas jurídicas associadas às transacções.

Pois bem, para que os dados representem direitos numa Blockchain de forma totalmente autónoma e independente de qualquer custódia, é apenas necessário que a autoexecução ecossistémica cumpra as regras que o Estado de direito definir. Além disso, esses direitos têm de ser reconhecidos por todos os intervenientes do ecossistema sem necessidade de recorrer a qualquer guardião. É esta a pedra angular dos Smart Legal Contract.

Uma dessas regras é a identificação jurídica. Apesar de muitos consumidores de criptoactivos terem interesse no pseudo-anonimato por questões de confidencialidade, há duas razões que nos obrigam a encontrar alternativas a essa forma de proteger a identidade.

Em primeiro lugar, porque, com o SSI (i.e., acrónimo de Self Sovereign Identity, o qual significa identidade auto-soberana, também já discutido aqui), podemos desenvolver NFT dinâmicos que protejam a identidade dos intervenientes tão bem ou melhor que o pseudoanonimato. SSI esse que já está, aliás, em implementação na União Europeia (UE) com data provável para o início da implementação nos estados-membros em 2025.

Assim, com os token dinâmicos, já aqui discutidos, quando se trata de identificação jurídica, os códigos criptográficos nas Wallet não nos identificam de forma pseudoanónima, como habitualmente na #DeFi, apontando simplesmente para a verdadeira identificação num Smart Contract com os requisitos legais necessários e devidamente certificados pelas entidades institucionais. Para simplificar, vamos a chamar token certificado a este tipo de token dinâmico.

O mais interessante é que a referida implementação na UE passa precisamente por criar a infraestutura de identidades de certificação e validação, numa simples evolução do que já hoje acontece para as assinaturas digitais qualificadas (e.g., chave móvel digital). Serão os certificados fornecidos pelas respectivas entidades a ser accionados na Res Digitales para assim lhes conferir validade jurídica quanto aos intervenientes nas transacções.

Em segundo lugar, não há razão para proteger qualquer entidade recorrendo ao anonimato porque nenhuma forma do mesmo é possível quando se transaccionam activos a carecer de registo legal. Por exemplo, as antigas acções ao portador podiam ser detidas em segredo, tal como o numerário, mas as quotas de uma sociedade comercial, ou o dinheiro fiduciário desmaterializado, carecem de identificação jurídica no momento da transacção, sendo hoje essas as regras a cumprir independentemente da tecnologia.

Na era da informática anterior às DLT, essa responsabilidade passava obrigatoriamente pela custódia da execução do direito para, por exemplo, combater o financiamento ao terrorismo, o branqueamento de capitais, bem como outros temas razoavelmente mais prosaicos como arrestos e penhoras.

Para dar vida à Res Digitales, serão os token dinâmicos devidamente certificados a guardar essa informação, a qual está à disposição das verificações dos reguladores para fazer cumprir a lei. Resta dizer que a certificação referida segue as leis da privacidade e que o processamento das verificações legais tanto pode ser assegurado a priori, e que é a solução mais interessante (i.e., compliance-by-design), como a posteriori, numa perspectiva de auditabilidade.

Não obstante, é sempre preciso garantir que a pessoa jurídica na posse do token que a identifica é realmente quem diz ser, e isso resolve-se. A lei já hoje obriga a uma hierarquia de processos de identificação de acordo com o tipo de transacções em causa, desde a simples assinatura contra a cópia no Cartão de Cidadão, passando pelo reconhecimento da assinatura, pelos actos notariais, ou mesmo a chave móvel digital. Mais uma vez, cabe à sociedade decidir como utilizar a tecnologia, e depois legislar e regular a sua utilização, até porque as actuais assinaturas digitais qualificadas têm bastantes fragilidades que também interessa colmatar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.