Repitam comigo: violência gera violência. Como tem defendido Alexandra Lucas Coelho, o horroroso e injustificável ataque terrorista do Hamas a 7 de outubro inaugura uma nova era: para o conflito Israel-Hamas, para a questão israelo-palestiniana e porventura para o Médio Oriente.

Foi um ataque sem precedentes, e, em resposta, a ‘pressão’ exercida por Israel em Gaza, também ela levada ao paroxismo, causou a catástrofe humanitária que está à vista. Pelo nível de violência e desespero de ambos os lados, e também por ter obrigado a ‘comunidade internacional’ a recentrar a sua atenção neste conflito há, pois, um antes e depois de 7 de outubro.

Com o desenrolar dos eventos, têm-se multiplicado os apelos a um cessar-fogo humanitário, quer no âmbito da ONU, quer por parte da sociedade civil de diversos países. Esta segunda-feira, numa conferência de imprensa, Netanyahu reiterou a posição israelita: rejeitando o cessar-fogo, traçou paralelismos com Pearl Harbor e o 11 de Setembro, invocando o direito de defesa contra o terrorismo, e alegando que os apelos ao cessar-fogo equivalem a apelos a que Israel “se renda à barbárie”.

Ora, a única resposta sensata a tal sentença é a enunciada na forma lapidar de Francisco Assis (anterior ao discurso de Netanyahu): “não se combate a barbárie com barbárie”. Como se percebe, chegamos a um ponto em que o extremismo de ambos os lados impede que se quebre o ciclo de violência, ou se respeitem os direitos humanos mais básicos. Álvaro Vasconcelos assinalou-o há dias: não podemos ceder às derivas de desumanização nem de israelitas nem de palestinianos.

A tendência é antiga e tem várias ocorrências. Numa conferência sobre direitos humanos, “Human Rights, Rationality and Sentimentality”, proferida nas conferências de Oxford organizadas pela Amnistia Internacional em 1993, Richard Rorty, comentando os relatos das atrocidades na guerra da Bósnia, mostra como nos conflitos que envolvem práticas de limpeza étnica, se perde o traço da humanidade do outro (p. 167). Nesses casos, explícita ou implicitamente, humano passa a ser perversamente identificado com “pessoas como nós” – logo, não como os outros (p. 168); daí até à dissonância cognitiva que naturaliza as maiores atrocidades contra os outros, o caminho é curto.

Essa atitude subjaz à postura do Hamas. Mas não se passará o mesmo com a atual liderança israelita quando, ao anunciar o cerco total a Gaza, o ministro da Defesa israelita ‘explicou’ as suas ações anunciando estarem a lutar contra “animais humanos e agindo em conformidade”?

A quem, como nós, tem a sorte de não viver em estado de guerra nem ameaça existencial permanente, ocupação, violação quotidiana de direitos humanos e ameaça de limpeza étnica, sobra um horror mediado pela distância, mesclado com um sentimento de impotência. E lá voltam a surgir episódios de mobilização coletiva pelo ódio – como a da invasão do aeroporto do Daguestão na Rússia, em perseguição a passageiros israelitas provenientes de Telavive.

O estado a que se chegou

No seu corajoso discurso de 24 de outubro, Guterres resumiu a posição decente: nem o sofrimento de décadas do povo palestiniano justifica os ataques do Hamas, nem tais ataques justificam a punição coletiva do povo palestiniano. Porque, na prática, é disso que se trata: punição coletiva. O que se atesta não só pela recusa do cessar-fogo como pelo bloqueio a Gaza, incluindo a escassez de ajuda humanitária. No momento em que escrevo, o último relatório da ONU aponta 8300 vítimas civis palestinianas, 70% das quais mulheres e crianças, e cedo estes números ficarão desatualizados.

É inevitável. Num território com aquela densidade populacional, ataques deste género dizimam a população inocente. Israel sabe-o, o Hamas sabe-o, é eticamente inaceitável e, no entanto, acontece.

Não é como se fosse um problema simples de um martelo a acertar num prego, resume Dominique de Villepin numa entrevista recente. Villepin, diplomata e antigo primeiro-ministro de França durante a presidência de Chirac, aponta para quão errada é a abordagem: não se combate o terrorismo desta forma, como mostram os fracassos dos EUA no Afeganistão e no Iraque.

Villepin descreve também a situação como uma armadilha preparada pelo Hamas: ao intensificar o horror, preparou o terreno para uma reação desproporcional do lado israelita e, por conseguinte, não só forçou um recentramento das atenções na situação palestiniana como terá tentado mobilizar a extensão do conflito à escala regional.

Eis o estado a que se chegou. Mas, aqui chegados, a questão decisiva é colocada por Judith Butler: “e se a nossa moralidade e a nossa política não terminarem com o ato de condenação? E se insistirmos em perguntar que forma de vida libertaria a região de uma violência deste género?”.

Que futuro?

Pode parecer utópico falar-se em respeito pelo direito internacional ou soluções políticas como o velho desenho dos dois Estados, quando a situação em Gaza piora a cada dia. No imediato, a prioridade tem mesmo de ser o cessar-fogo humanitário e o alívio do sufoco trazido pelo bloqueio. Mas, a médio prazo, e sendo impensável o retorno ao statu quo pré 7 de outubro, o horizonte tem de ser o da solução política não violenta e justa.

Há razões para ser pessimista em relação a tal desígnio, tendo em conta o historial de fracassos de negociações e mediações, com o incumprimento dos Acordos de Oslo à cabeça, a radicalização de ambos os lados, e o permanente desrespeito das resoluções da ONU por parte de Israel. Num contexto maniqueísta, ninguém está interessado em diálogo. Para além de que as condições políticas internas são, no imediato, nulas. As versões seculares e moderadas de ambos os lados encontram-se neste momento asfixiadas. E Israel, com a política de colonatos na Cisjordânia e as suas leis discriminatórias, deixou de ter a solução de dois Estados na sua agenda.

Em tese, só com atores políticos mais moderados se poderia encontrar uma solução política não violenta. Mas o horror de 7 de outubro acaba por reforçar a linha duríssima de Netanyahu. E, do lado palestiniano, para além de não haver quaisquer condições para uma autodeterminação sob ocupação, também não se vislumbra solução política fácil. O desespero e a opressão nunca são bons conselheiros. Seria, porventura, preciso voltar a legitimar a Autoridade Palestiniana.

Estando os palestinianos de mãos atadas, qualquer solução política que permita uma convivência pacífica só pode ser obtida por pressão diplomática junto do Estado de Israel. Não é claro se essa solução passaria por uma fórmula de dois Estados ou só um. Mas em qualquer caso teria de ser uma solução legalmente reconhecida e sem violência estrutural ou desigualdade de direitos.

Se parece impossível pedir essa pressão aos EUA, o mesmo não se deveria verificar na UE, podendo ela, como sustenta Álvaro Vasconcelos, ter uma posição mais firme na defesa destes direitos. Acabar com a exceção, como defendeu André Barata, e não obliterar o futuro, implica procurar tal solução política.