A relação entre energia e alimentação foi uma das mais importantes lições retiradas pela Europa da pandemia. No entanto, o setor agro-alimentar do “Velho Continente” tem outros desafios para lidar nos próximos anos.
Paulo Portas será um dos oradores em destaque no sétimo colóquio hortofrutícola, organizado pela Lusomorango e que terá lugar em Odemira a 18 de julho. O Jornal Económico é, mais uma vez, parceiro desta iniciativa.
A pandemia da Covid-19 mostrou uma utilidade das cadeias de abastecimento, incluindo as alimentares. Depois tivemos a guerra na Ucrânia. A segurança alimentar passou a ser entendida como uma questão prioritária?
A energia e a alimentação sempre foram categorias geopolíticas, eu diria primárias. Ou seja, há muita evidência histórica de que a capacidade de alimentar e a capacidade de fornecer energia foram objetivos de geopolítica principais e quem se esqueceu disso, e quem achou que era apenas um assunto de mercado, normalmente, não se deu bem. E isso aconteceu precisamente com a Europa. Os últimos cinco anos não foram as primeiras crises globais, nem serão as últimas. Mas, do ponto de vista geopolítico, a principal lição aprendida tanto da pandemia como depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, e ainda o ataque do Hamas a Israel a 7 de outubro, é a retaliação, até hoje, de Israel relativamente à questão palestiniana. Tudo isto cruzou a estabilidade das cadeias de abastecimento de forma setorial ou de forma global. Em particular, na pandemia, os europeus começaram a reaprender as lições de demasiadas dependências ao mesmo tempo, sem reservas para atenuar os efeitos. Em 2020, havia 15 países da União Europeia que tinham uma dependência do gás da Rússia superior a 15%. Não era o caso de Portugal, felizmente.
Com a Alemanha a destacar-se.
Com grande destaque para a Alemanha. E isso obrigou a uma reconfiguração das opções e dos contratos, porque não são bens que se possam substituir de um dia para o outro. Houve um enorme esforço de diplomacia económica como consequência imediata e aconteceu depois, em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia, um risco similar, embora com outra natureza: a Ucrânia era uma das bacias alimentares do continente europeu.
A questão dos cereais parece ter desaparecido.
Foi das poucas coisas em que a comunidade internacional conseguiu fazer algo de forma organizada com a intervenção das Nações Unidas e uma certa mediação da Turquia, mas a possibilidade de não bloquear nem tornar um risco maior – e, portanto, não acessível do ponto de vista financeiro – o transporte de cereais da Ucrânia, mas não só, em território de guerra e perante rotas de navegação sob ameaça. Isso levou a uma grande alteração dos preços internacionais dos cereais, que depois estabilizaram, mas que causaram ruturas e contribuíram para a inflação. Entre os dois factos medeiam dois anos e, de repente, com a pandemia, a vida económica – e antes dela a vida individual, familiar, social – ficou em grande medida intercetada, e os países que tinham grandes mono dependências ficaram muito alarmados com a impossibilidade, por exemplo, das cadeias de fornecimento da China para o resto do mundo. E aconteceu o mesmo relativamente aos cereais, não apenas para a Europa. Lembro-me que a crise dos cereais era uma enorme ameaça para economias em desenvolvimento que são geoestrategicamente determinantes, como é o caso do Egito, onde a instabilidade, uma provável crise de escassez e preços muito altos podiam gerar grandes protestos e grande instabilidade política, com consequências enormes.
Portanto, é importante perceber a componente geopolítica da energia.
É uma lição aprendida, diria eu. Além disso, é importante que nunca mais se esqueça que a produção de alimentos básicos tem uma componente geopolítica, e isso hoje está presente com diferentes pontos de partida do ponto de vista de quem tem recursos e de quem não os tem na vida geopolítica do mundo – que é, como sabemos e temos disso experiência, um tempo de incerteza.
A população mundial continua a aumentar ao mesmo tempo que os hábitos mudam e os níveis de desenvolvimento também. Essa pressão tem influenciado a relação entre os Estados?
Para quem queira pensar para além do curtíssimo prazo (ou seja, amanhã de manhã), a demografia é um dos fatores absolutamente essenciais para perceber o que é que vão ser as sociedades daqui a 25, 50 ou 75 anos. Ouvimos muito pouco os demógrafos mas, objetivamente, devíamos ouvi-los com mais atenção. As Nações Unidas têm projeções demográficas que, depois da ultrapassagem desse milestone que foram os 8 mil milhões de habitantes, preveem que a continuação da subida da população ultrapassará os 10 mil milhões, e só um pouco depois disso é que começará a estabilizar. Isso significa que é completamente diferente pensar na alimentação de um mundo com 2500 milhões de pessoas ou um mundo com quatro vezes mais habitantes. Esse é o primeiro dado relevante. Depois, também é preciso perceber quais são os continentes em ascensão demográfica e os continentes em sério risco de envelhecimento.
Só para complementar: a ONU estima que metade desse crescimento populacional é perspetivado para apenas nove países.
Repare que há dois casos em África – a Nigéria e o Níger – de extremo crescimento demográfico. Se os demógrafos das Nações Unidas estiverem certos, no final deste século teremos mais habitantes na Nigéria do que na Rússia e Europa juntas. O envelhecimento da Europa é muito severo: temos uma idade meridiana de 44 anos na Europa, que em Portugal são 47. Como costumo dizer: para novinhos não vamos. Pelo contrário, África é um continente em que a idade meridiana são 17 anos, A esperança de vida é menor, embora haja algum progresso nesse sentido. Mas isso implica que a Europa tem que ter um olhar muito atento em relação a África e tem que ajudar a resolver problemas europeus através da África e resolver problemas africanos, criando oportunidades em África. Outra grande região geopolítica do mundo que entrou em declínio demográfico severo e ninguém presta muita atenção: a China. Deixou de ser o país mais populoso do mundo no ano passado e foi ultrapassada estavelmente pela Índia. Mais uma vez: se os demógrafos das Nações Unidas estiverem certos, a China terá metade da população que tem hoje no final deste século. Em vez de 1400 milhões de habitantes, terá 700 milhões de habitantes.
Saúde e segurança social vão ressentir-se?
Basta pensar nisto para entender quais são os problemas do lado europeu nos sistemas sociais: saúde e segurança social. Haverá um momento em que se a tendência não for revertida – e as tendências demográficas demoram muito tempo a ser alteradas –, basta que haja um desequilíbrio entre os ativos que estão a trabalhar e financiam e os inativos que já estão reformados, que vão viver felizmente muito mais anos, porque a esperança de vida aumentou. Além disso, tem efeito na competitividade económica, porque uma sociedade envelhecida naturalmente tem menor capacidade de inovação, de mudança, de reforma. Portanto, a China, com metade da população que tem hoje, terá que fazer evoluções económicas, porque senão não conseguirá sustentar o seu modelo de crescimento. Quem consegue manter a estabilidade populacional, curiosamente com ganhos modestos mas relevantes, são os EUA, acima de tudo por causa dos fluxos migratórios.
Falou há pouco da questão da proteção social. Como é que Portugal se deve posicionar nesse desafio?
Portugal tem que pensar a sério na sustentabilidade e na estabilidade dos seus sistemas sociais. Ou seja, se a esperança de vida aumentou imenso, felizmente, a questão central é saber se esse acrescento de anos de vida tem qualidade ou não. É preciso adaptar os sistemas de saúde e de segurança social a este facto. Não está fácil obter no Ocidente compromissos, mas isto implica compromissos entre as grandes forças políticas que podem governar os países europeus. Hoje em dia, a política está muito subordinada aos gritos e aos extremos, mas se há matéria em que é preciso racionalidade, estudo, capacidade, compromisso, é precisamente a da Segurança Social e a da evolução dos serviços que a saúde presta. É completamente diferente ter um sistema de saúde orientado para, como dizem os médicos, episódios agudos ou para doenças crónicas e múltiplas. A questão do envelhecimento e os impactos que tem na competitividade económica, para além dos impactos sociais de que já falámos, são absolutamente determinantes. Falando com muitas empresas em certos setores, é muito frequente ouvir falar em escassez de recursos humanos e escassez de opções para contratar. Isto implica que haja políticas constantes para atenuar o declínio demográfico.
As tarifas norte-americanas têm sido um tema. Há questões agroalimentares em cima da mesa?
Nenhum país do mundo é inteiramente liberal do ponto de vista do comércio e, tirando a Coreia do Norte, com probabilidade, nenhum é inteiramente protecionista do ponto de vista do comércio. Portanto, as economias de mercado ainda podem respirar um pouco, apesar dos disparates dos governos. Considero o protecionismo sistémico um disparate. O protecionismo sistémico dispensa as empresas de serem competitivas, de inovarem e de se reestruturarem. Normalmente, isso acontece quando os governos querem pôr a mão por baixo de empresas mal geridas ou que perderam o seu momento e a sua ocasião. O mundo não está a viver um bom tempo nessa matéria. O protecionismo, como naquele dia suposto do “Dia da Libertação”, 2 de abril de 2025, foi esse momento, esse pilar de protecionismo sistémico, porque a primeira economia do mundo abriu uma guerra comercial com mais de 70 nações. Mas isso durou oito dias. As tarifas sistémicas para mais de 70 países foram substituídas a 11 de abril. Isto prova uma coisa: os EUA, sendo a primeira economia do mundo e a mais inovadora, seguida de perto da China, já não aguentam uma guerra comercial com todo o mundo ao mesmo tempo mais do que dez dias. E tiveram que recuar. Por outro lado, os factos da geopolítica mostram a mútua dependência como fator de estabilização. Sou contra excessos de dependência ou dependências porque são perigosas. Não gosto de governos a determinarem preços, gosto que a lei da oferta e da procura faça o seu trabalho. Mas o que é que fizeram os chineses: para além de venderem, aparentemente, uma porção relativamente modesta, mas com impacto de dívida pública americana, e causar estragos no sistema financeiro americano e na sua previsibilidade, os chineses disseram uma coisa clarinha, que foi ‘nós vamos fazer restrições à exportação de terras raras para os Estados Unidos’. E eram apenas seis das 17 terras raras.
Atingiram os EUA no calcanhar de Aquiles.
A economia digital americana não funcionaria sem terras raras chinesas e os chineses perceberam que não podiam viver sem o petróleo que passava pelo estreito de Ormuz. Isso, em condições normais, é um estabilizador, porque ninguém está interessado em levar os conflitos muito longe. Agora, há uma coisa que é dos manuais: as tarifas significam preços administrativos e uma interferência nos mercados, geram inflação mais tarde ou mais cedo, porque uma parte das tarifas é repercutida no consumidor. Nesse sentido, adiam investimentos. Os avanços e recuos dos EUA geram um preço superior ao da própria tarifa que é o preço da incerteza, o que leva alguns países europeus a terem um acordo, mesmo que modesto, para ter previsibilidade. Mas, objetivamente, isto é mau para a inflação, consumidores, crescimento, investimento – e é mau para a inovação. E a inovação é o coração, como podemos ver na agricultura. Não há comparação entre gerir uma propriedade ou uma herdade há 30 anos e geri-la hoje: a capacidade de utilizar melhor a água, evitar desperdícios, monitorizar doenças e pragas. Nesse sentido, a inovação resolveu muitos problemas que, de outra maneira, não teriam sido resolvidos.
Ora, um ambiente de economias fechadas, em que uma ação gera uma retaliação, uma retaliação gera uma contrarreação e depois continuamos a escalar… isso não é bom para a inovação. Espero que o mundo chegue a um patamar mínimo de entendimentos entre os grandes blocos económicos e a Europa. A Europa tem que estar bastante atenta nesta matéria, porque se os três blocos (Estados Unidos, China e Europa) estiverem em conflito entre si, isso gerará menos crescimento global. Mas é preciso prevenir também o risco dos EUA e China se entenderem a expensas da Europa. Portanto, a Europa tem que estar muito atenta. Somos aliados dos EUA enquanto acreditarem na NATO, e somos nós que temos a ameaça geopolítica mais imediata no nosso continente, que é a Rússia de Putin. Um bocadinho mais de racionalidade e menos de gritaria fariam bem ao mundo.
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