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Pedro Soares: “Reduzir a transição energética à lógica das grandes empresas é uma irresponsabilidade total”

Em entrevista ao Jornal Económico, o presidente da comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação, defende que a questão das alterações climáticas deve ser discutida de “forma séria, profunda e sustentada”. Pedro Soares considera que a questão da transição energética não deve ser confiada apenas aos grandes grupos privados e apela a uma maior interferência do Estado. O deputado bloquista fala ainda sobre a habitação e as expectativas após a criação de uma superministério que tutela essa área.
4 Março 2019, 07h49

A questão das alterações climáticas tem marcado a agenda política. Por que é que este é um problema que nos deveria preocupar a todos?

Como o secretário-geral da ONU disse aqui há tempos, o problema das alterações climáticas talvez seja um dos mais importante atualmente. Todos os atores políticos deveriam fazer um grande esforço no sentido de colocar esta questão no debate e na agenda política. A perspetiva que o Governo tem é de que Portugal deve atingir em 2050 a neutralidade carbónica, ou seja, o CO2 que produzimos deve ser só aquele que temos capacidade de absorver. Essa absorção faz-se essencialmente através das florestas. É evidente que Portugal tem que dar um contributo fundamental para que o Acordo de Paris seja levado a cabo. Este deve ser um acordo mundial e, desde logo, da Europa. Mas não podemos ficar pela definição de objetivos, que são estimáveis.

O ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, quer que até 2050 Portugal seja sustentado a 100% por energias renováveis e, em 2030, o carvão deixe de ser utilizado. O que tem sido feito para alcançar as metas para a transição energética com que Portugal se comprometeu?

Faz falta em Portugal uma lei das Alterações Climáticas e da Transição Energética, que coloque em lei os mecanismos e os objetivos para se lá chegar. Estou preocupado, não tanto com as metas que estão previstas no roteiro para a neutralidade carbónica, mas no que toca aos meios que o Estado tem para levar a cabo esses objetivos. Por exemplo, Portugal é o país com maiores níveis de exposição solar. No entanto, é o país da União Europeia (UE) que menos energia fotovoltaica tem. Apenas 1,4% da eletricidade produzida no nosso país é de origem fotovoltaica. Temos uma insipiência completa relativamente àquilo que poderia ser a maior fonte de energia para o nosso país. Tivemos agora recentemente o encerramento de uma fábrica de painéis solares em Moura, quando de facto o que nós precisamos é de um maior investimento. A questão que coloco é: que mecanismos é que o Estado tem para incrementar de forma sustentada este processo de transição energética. Eu simpatizo com a ideia de que até 2050 temos de ter neutralidade carbónica e de que até 2030 temos de acabar com o carvão na produção. Podemos divergir na velocidade do objetivo, mas nas metas estamos de acordo. Agora a questão que coloco é: que mecanismos é que o Estado tem para colocar isto em prática? É a fiscalidade só. Vamos ficar dependentes de privados que vão ter mais ou menos benesses fiscais para fazerem investimentos para que haja transição energética no nosso país?

“Em termos públicos, temos pouca ou nenhuma capacidade de concretizar objetivos [definidos para a transição energética]”

Acha que o Estado deveria fomentar mais intensamente a transição energética junto dos privados?

Temos de ter em mente que boa parte do investimento e da rede de produção de energia eólica ou de produção de energia hídrica está ligada a grupos privados. Em termos públicos, temos pouca ou nenhuma capacidade de concretizar objetivos. Em grande parte, estamos dependentes da lógica de rendimento imediato que determinado investimento vai ter, quando sabemos que a transição energética, independentemente de poder ou não dar lucros a determinada empresa, é fundamental. Em 2011, foi concretizada a última fase da privatização do grupo EDP. Neste momento, não temos o principal grupo de energia com capacidade de intervenção do Estado, que seria fundamental para este processo. Também não temos a REN. Havendo uma intervenção determinada em termos públicos no sentido de concretizar o processo de transição energética, teria efeitos muito relevantes para a nossa economia e para a criação de postos de trabalho em áreas tecnologicamente mais avançadas e colocar Portugal num patamar mais elevado na luta pela concretização do Acordo de Paris.

Acha que o Estado deveria reverter a privatização da EDP e da REN?

O Estado deve construir um setor público para a transição energética. Que seria multinível, com várias escalas e com intervenção em diversos setores. Não basta intervir na geração de energia. É preciso intervir na mobilidade, que é um dos principais setores de produção de CO2, é preciso intervir na agricultura e na pecuária. Temos de gastar menos água. Temos que racionalizar os nossos consumos e intervir ao nível da eficiência energética nas nossas casas. Há uma frente de intervenção enorme pela frente. Deixar isto dependente da lógica de mercado, que investe apenas naquilo que lhe dá lucro, é uma irresponsabilidade. É irresponsável porque apontamos metas nos nossos roteiros, mas depois não temos mecanismos para lá chegar.

Acha que nos comprometemos com metas demasiado ambiciosas no Acordo de Paris?

Em termos gerais, nós concordamos, mas depois em termos de definição de metas continua muito aleatório, como vimos na última CO24, em Katowice, em que não conseguimos chegar a acordo nenhum sobre as metas concretas para cada país. Julgo que há uma debilidade muito grande em termos da capacidade de intervenção pública para a transição energética e era necessário que houvesse uma inversão desta lógica, sob pena de ficarmos pela discussão de se deve haver mais carros a gasóleo ou não, quando o problema não é esse. O problema é se nós fazemos mais investimento na ferrovia, se mudamos a mobilidade nos transportes públicos para o modo elétrico, se vamos mudar as nossas cidades para que sejam mais eficientes em termos ambientais, se vamos fazer um investimento no sentido de tornar as nossas casas mais sustentáveis, se avançamos com investigação de forma decisiva na energia das ondas. Não há uma estratégia. Há um roteiro para a neutralidade carbónica que é simpático, mas não tem mais do que isto. O que é fundamental é discutir este problema de forma séria, profunda e sustentada.

“Se não fizermos esta transição o mais depressa possível, corremos o grave risco de estar a cair numa situação de irreversibilidade”

A questão dos lóbis no setor da energia pode ser um entrave para se atingir esse objetivo?

Esses lóbis só estão interessados em que haja transição na medida em que isso lhes der mais lucro. Isso é que é a grande condicionante que temos em relação a esta matéria. Precisamos de uma transição o mais rápida possível e há interesse nisso em termos ambientais. Precisamos de interiorizar esta ideia: se não fizermos esta transição o mais depressa possível, corremos o grave risco de estar a cair numa situação de irreversibilidade. Neste momento, e há um estudo internacional sobre essa matéria, se não houver medidas concretas no sentido de limitar a produção de CO2 nos próximos 12 anos, a situação corre o risco de se tornar irreversível. Se se tornar irreversível, temos de mudar tudo neste país e neste mundo. Passamos a ter o nível médio das águas do mar a subir, o que vai invadir os nossos territórios. Passamos a ter os efeitos dos fenómenos extremos em termos climáticos nos incêndios florestais, nas secas, nas cheias. É isto que está em causa. Agora reduzir isso à lógica dos acionistas das grandes empresas, é que é uma irresponsabilidade total.

A comissão a que preside tem também a pasta da Habitação. Quais foram os trabalhos que foram desenvolvidos durante esta legislatura nesta área?

Durante toda a legislatura tivemos a procurar resolver os problemas que ficaram da legislatura anterior, com a liberalização das rendas, novo regime de arrendamento urbano, os problemas emergentes relacionados com o turismo, com os cidadãos habituais não residentes (que vêm cá comprar casa para ficarem sem impostos nos seus países de origem, como é o caso dos suecos). Há um problema terrível que é a falta de oferta pública de habitação. Desde os anos 90, com o Programa Especial de Realojamento (PER), que não há investimento na oferta pública de habitação. Todo este conjunto de aspetos (a liberalização da renda, o turismo, o alojamento local, a falta de investimento, etc) deu origem a uma situação crítica e diria mesmo de crise habitacional que neste momento vivemos no nosso país, sobretudo nas maiores áreas urbanas. Andámos na comissão e no Parlamento a procurar resolver estes problemas. Tivemos primeiro de resolver o problema do regime de renda apoiada, ao nível dos bairros sociais que era uma situação completamente incompreensível que os tratava como pessoas que não eram consideradas como tal e não tinham os mesmos direitos que têm os outros inquilinos no regime normal. Depois colocou-se o problema do alojamento local. Havia uma pressão enorme e tivemos de fazer a revisão disso. Depois veio o problema da Fidelidade e do direito de preferência em que quando a propriedade não está em propriedade horizontal, as pessoas não têm direito de preferência ou então têm de se candidatar ao pacote todo (o que é impossível). Resolvemos isso também. Agora as pessoas já têm direito de preferência. Agora estamos a discutir a Lei de Bases da Habitação, que deve ser o chapéu e orientador de uma política pública de habitação para o nosso país.

“Em vez de termos uma política de habitação, temos uma política de financiamento da banca e da proprietização”

Por que é que a Lei de Bases da Habitação é crucial para que a habitação seja encarada como um dos pilares do Estado Social ?

Tem havido uma política de habitação em Portugal. Tem é sido uma política de proprietização, de procurar que cada um seja proprietário. Mas é uma política errada. Nos últimos 25 anos, 73,3% da despesa pública em habitação foi para pagar juros bonificados à banca. Em vez de termos uma política de habitação, temos uma política de financiamento da banca e da proprietização. Isso conduziu à política habitual. O debate sobre a Lei de Bases da Habitação só pode ter um objetivo, que é inverter este paradigma. A habitação tem de ser encarada como um dos pilares do Estado social, como é a educação, saúde e segurança social, como acontece no resto dos países. Na Holanda, 30% da habitação é pública ou cooperativa, que não tem como objetivo o lucro, não é especulativa. Em Viena, é 48%. Em Portugal, são apenas 2%. Que democracia é que nos tínhamos se o mesmo acontecesse na saúde ou na educação? É uma calamidade. A habitação é um direito fundamental, que está estabelecido na Constituição. Hoje em dia, a questão da habitação já não são só as populações de rendimentos médios. Afeta também os setores de rendimentos médios. Neste momento, a taxa de esforço já é de 35% e a tendência é para aumentar. Alguma coisa tem de ser feita. A política da direita, no que toca à habitação, é de que deve ser provida apenas pelos privados e que o Estado deve resolver apenas o problema dos setores mais empobrecidos da população. Não é essa a nossa perspetiva.

Acha que o BE saiu prejudicado, nesta matéria, depois do caso Robles?

Temos um discurso muito claro sobre essa matéria… Penso que não.

O que pensa da saída dele do partido?

Foi uma decisão dele e eu respeito essas decisões.

Com esta quarta remodelação do Governo foi criado um “superministério” da Habitação, que se junta com o das Infraestruturas e passa a ser tutelado por Pedro Nuno Santos. O que espera deste novo ministério?

Não conheço assim tão de perto o trabalho de Pedro Nuno Santos nesta área e por isso prefiro esperar para ver. Mas, no Bloco de Esquerda, estamos muito preocupados com o que foi feito até agora. Este ano dificilmente teremos um investimento superior em políticas de habitação ao do ano anterior. O Governo atribuiu 40 milhões de euros ao programa 1.º Direito de apoio ao acesso à habitação para pessoas que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada. Mas é preciso ter em conta que temos 26 mil agregados, distribuídos por todo o país, que precisam de ajuda imediata. Esta é que deveria ser a prioridade do atual Governo.

“Não faz sentido a meia dúzia de meses avançar com uma moção de censura ao Governo”

Esta remodelação surge poucos dias depois de ter sido anunciada uma moção de censura ao Governo por parte do CDS. Porque é que o BE não apoiou esta moção?

Esta moção de censura foi uma não existência, até porque o CDS sabia a priori que não ia ter quaisquer consequências. Foi mais uma disputa com o PSD, no sentido de preparar o caminho pré-eleitoral. É preciso ter em conta de que se tratou de uma moção claramente demagógica. O CDS vem criticar a degradação dos serviços públicos, esquecendo-se de que contribuiu para esta situação quando esteve no Governo com o PSD.

Os partidos de direita vieram dizer que com esta moção de censura ficou claro que partidos como o BE que sustentam o Governo podem até criticar a sua governação, mas na hora de votar dão-lhe a mão. Este voto contra foi isso mesmo, uma espécie de moção de confiança ao Governo?

O BE não votou a favor da moção apresentada pelo CDS porque entende que o CDS não é uma alternativa de Governo. O BE não votou sempre a favor de todas as propostas do Governo. Aliás, os documentos mais críticos foram votados sempre com a aprovação da direita. Mas há falhas muito graves nesta governação, especialmente no que toca às leis laborais. Com este Governo assistiu-se a uma redução do desemprego, mas aumentou a precariedade. Neste momento, temos 900 mil trabalhadores com contratos de curto prazo ou contratos ainda mais precários. Assiste-se a uma forte pressão sobre os salários e uma diminuição assinalável da contratação coletiva. E isso não é aceitável.

O BE está a pensar avançar com a sua própria moção de censura ao Governo?

Não faz sentido a meia dúzia de meses avançar com uma moção de censura ao Governo. O debate que se irá gerar com o aproximar das eleições para o Parlamento Europeu vai ser essencial para que os programas dos partidos sejam confrontados e os eleitores façam as suas próprias escolhas.

Nas próximas legislatura, acha que é possível uma nova geringonça com os partidos de esquerda? O BE apoiaria isso? 

O BE não descarta essa possibilidade, mas teremos de esperar pelos resultados das eleições para avaliar essa hipótese.

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