Que Belém tem constituído um porto de abrigo dos executivos de António Costa não restam dúvidas. Ao longo do mandato presidencial, a política dos afetos nunca se esqueceu de guardar uma parte considerável da afeição para os governos minoritários do PS. Aliás, não foram poucas as ocasiões em que esse afeto assumiu uma dimensão paternalista, desresponsabilizando, ou pelo menos relativizando, a responsabilidade governativa em situações de fracasso evidente. Porém, o avolumar dos pecados governamentais obrigou o Presidente a rever a sua posição.
Como católico, Marcelo Rebelo de Sousa sabe que, ao bater no peito, o crente pede perdão pelos erros cometidos por pensamentos, palavras, atos e omissões. Um ato que, no âmbito da política, se pode traduzir como o reconhecimento da má gestão da res publica.
Como constitucionalista, o Presidente da República não desconhece que em qualquer manual de Ciência Política ou de Direito é possível perceber que legalidade, legitimidade e legitimação, apesar de palavras cognatas, não são sinónimos. Por isso, mesmo sabendo que a legalidade não está em causa, tal como a legitimidade decorrente do voto, acredita que a legitimidade de exercício pode estar em risco.
Foi esta nova realidade que justificou a chamada a Belém das ministras da Saúde e da Justiça, e não do primeiro-ministro. Na verdade, Marcelo não esperou que Costa o viesse informar sobre a questão que se prende com o uso – ou não – de máscaras nas prisões. O Presidente dispensou a intermediação. Quis ouvir diretamente as titulares das pastas, mesmo sabendo que Marta Temido já o tinha levado ao engano. Uma prova de que Marcelo deixou de acreditar na capacidade de Costa para liderar por inteiro a equipa governamental.
O Presidente resolveu, assim, regressar ao papel de protagonista. Só que, desta vez, não o fez para apoiar a ação do primeiro-ministro. Assumiu publicamente que tinha sido obrigado a intervir porque havia um vazio que era urgente preencher. Dito de uma forma mais direta: era preciso que alguém tomasse as rédeas do processo, face à omissão ou desnorte do líder do executivo. O assunto ia muito além das posições contraditórias assumidas publicamente pelo diretor-geral dos Serviços Prisionais e pelo secretário de estado da Saúde, duas peças que pouco mais são do que meros peões no tabuleiro deste jogo de xadrez.
O Presidente quis mostrar que a perícia estratégica que possibilitou a Costa a formação da geringonça já lá vai. Daí o primeiro-ministro ter aceitado a tábua de salvação que o PCP, depois de aturadas negociações, decidiu emprestar-lhe. O desespero do náufrago a ditar a lei.
Convém lembrar que, na democracia representativa, o mandato é não imperativo. O eleito não carrega consigo um caderno de encargos. Porém, tal não permite fazer tábua rasa das promessas eleitorais. No caso português, a pandemia encarregou-se de mostrar aquilo que era indisfarçável. Aos olhos de um número crescente de portugueses Costa está a perder a legitimidade de exercício. Algo que põe em causa a gestão cabal da bazuca europeia que vem a caminho. A necessidade de intervenção – passada, presente e futura – de Marcelo na transferência dos 476 milhões para o Novo Banco é o mais recente indício.
Por norma, a legitimidade conquista-se pelo mérito, mas perde-se por erros próprios, ainda que negados ou assumidos com dificuldade.