Causou estranheza o Plano de Ação para as Migrações apresentado pelo governo esta semana, tendo em conta o momento da apresentação (em semana de eleições europeias), a primeira medida emblemática (extinguir o procedimento de manifestações de interesse) e a velocidade com que o diploma referente a esta medida foi promulgado pelo Presidente da República.

O plano tem 41 medidas, mas só a extinção da figura legal das manifestações de interesse foi considerada urgente. À primeira vista, poder-se-ia considerar uma medida sensata (como a qualificou o Presidente da República): face à sobrecarga da AIMA – Agência para a Integração, Migrações e Asilo e aos mais de 400 mil processos de regularização pendentes, pareceria natural estancar o aumento dos processos e regularizar os que estão em espera há tempo irrazoável.

Mas tal medida acaba por fazer pouco sentido, por ser pouco provável que venha a produzir o resultado desejado de uma imigração mais controlada e com processos mais dignos. Para além disso, envia um sinal de fechamento, quando sabemos o quanto Portugal precisa de imigração.

Note-se que quer o governo quer o Presidente da República foram cuidadosos, tentando passar uma imagem de equilíbrio entre extremos, e multiplicando as imagens na sua argumentação; se Marcelo não quer que a “bola de neve” dos processos “continue a crescer”, Montenegro diz não querer nem portas “fechadas” nem “escancaradas”, pressupondo-se, claro, o diagnóstico de que até agora elas estariam abertas de par em par.

Mas isto está longe da verdade. A nível global, sempre estivemos muito longe do ideal cosmopolita de uma livre circulação de pessoas, e nem estou aqui sequer a querer discutir o que de meritório ou criticável existe neste ideal, apenas a constatar um facto. As condições de entrada, residência e direito de circulação ou cidadania sempre estiveram reguladas, tendo o investimento tido a importância que conhecemos, através dos ‘vistos gold’.

No caso das manifestações de interesse, lembre-se, elas serviam apenas para que imigrantes já em Portugal e com descontos para a Segurança Social pudessem pedir autorização de residência, pelo que este é um novo obstáculo a pessoas que, trabalhando e pagando as suas contribuições, se deparavam com a incapacidade de resposta por parte da AIMA.

A imigração é necessária

Contudo, o sinal enviado por esta medida é que porventura estaremos perante um ponto de inflexão, em que se as portas metafóricas do país não se encontram fechadas, podem ser consideradas ‘semicerradas’, até porque a dinâmica vai no sentido do estreitar da passagem.

O essencial já foi dito por muitas das críticas que foram sendo apontadas: não é certo que tal medida signifique uma diminuição no número de pessoas que procuram o país, pois isso depende de uma conjugação entre a falta de oportunidades nos países de origem e as dinâmicas de procura do nosso mercado de trabalho, mas pode certamente significar um aumento da imigração ilegal, deixando as pessoas ainda mais vulneráveis às redes de tráfico e à exploração laboral; em breve, transfere-se a pressão da AIMA para os consulados que terão de conceder, previamente à entrada em Portugal, os vistos para os imigrantes que venham trabalhar, sendo duvidoso que os consulados consigam ter uma capacidade de resposta adequada.

Cabe perguntar se as prioridades não deviam ter sido outras. O plano do governo pretende também resolver o estrangulamento burocrático, por exemplo ao “reforçar os recursos humanos e tecnológicos da AIMA”, promover uma “integração humanista”, ao aumentar vagas para requerentes de asilo e refugiados, e implementar diferentes medidas de integração (projetos em locais de intervenção prioritária, integração no mercado de trabalho), o que são objetivos louváveis. De todo o modo, se o problema mais palpável era o robustecimento dos serviços, era por aí que se devia ter começado.

O acolhimento digno dos imigrantes devia ser uma questão consensual em Portugal. Primeiro, e fundamentalmente, porque os seus direitos humanos têm de ser respeitados; como sugere o SOS Racismo, não devíamos ter face aos fluxos migratórios uma postura meramente utilitarista e securitária. Mas mesmo se argumentarmos com base no bem comum da nossa comunidade política, é inegável a necessidade de migração para fins laborais, o que nem inclui apenas a migração qualificada (outra prioridade deste plano).

Podemos questionar a viabilidade a longo prazo da estrutura atual da economia portuguesa, mas, tal como está, necessita e necessitará de imigrantes no futuro próximo. E é bom relembrar que o saldo das suas contribuições para a Segurança Social é muito positivo (1604 milhões em 2022).

Uma tendência europeia

O governo não questiona esta necessidade mas a escolha da prioridade parece trair a sua intenção. Como se tem notado, se esta mensagem, no momento em que surge, serve a alguém, é à extrema-direita. E nisto, Portugal apenas segue a tendência europeia.

No início do ano, referi neste espaço a influência da extrema-direita, incluindo nas questões migratórias na União Europeia (tendo em conta a nova lei de imigração em França e o Novo Pacto para as Migrações na UE) como um dos riscos para 2024. Parecemos agora ter uma reverberação interna desta tendência – embora, repita-se, se tomado no seu valor facial, o plano do governo pretenda ser abrangente e humanista.

A mensagem serve este propósito porque sublinha o equivocado diagnóstico das “portas escancaradas”. Mesmo não admitindo nominalmente as ligações abusivas entre imigração e insegurança, este sinal passa como o reconhecimento de um (alegado) problema, abrindo a porta à rampa deslizante da argumentação que se baseia neste tipo de associações.

Neste prelúdio às eleições europeias, os partidos de extrema-direita têm colocado ênfase na alegada ameaça da imigração, mantendo-a na agenda mediática, mas alguns dados sugerem que o assunto está longe de ser prioritário para a maioria dos Europeus. Um estudo da BVA Xsight sobre as preocupações e perceções dos cidadãos da UE produzido para a ARTE revela que a imigração aparece apenas como sétimo tema mais relevante, bem atrás de prioridades como a saúde, a guerra, ou o ambiente.

A cópia e o original

Mas é claro que quando são adotadas medidas ou discursos que podem ser lidos como navegando esta onda, a mensagem da extrema-direita é reforçada. Até porque se tem a sensação de que, mesmo quando não é eleita, consegue levar a cabo os seus planos, pelas cedências que obtém (como aconteceu em França).

Acontece que nestas ocasiões se corre o risco de algum dia se verificar aquilo que Jean-Marie Le Pen repetia várias vezes: o de o eleitorado vir a preferir “o original” (a extrema-direita) à “cópia” (a direita moderada que se deixa influenciar). Esperemos, portanto, que não tenha havido tática eleitoral por trás da medida anunciada, o que seria imprudente. Mas, nesta e noutras matérias, seria aconselhável evitar a contaminação ideológica, distinguir verdadeiros de falsos problemas, e escolher bem as prioridades.