A futurologia é uma arte hermenêutica com resultados muito incertos. Por cada palpite que se acerta, múltiplos outros se falham. Assim, não arriscarei grandes antevisões para 2024, já que me parece, neste ponto inicial, um período marcado por grandes incertezas. Mas não é inútil prestar atenção às tendências e aos riscos, até para ponderarmos o que de nós pode depender. Na sua mensagem de Ano Novo, o Presidente da República pôs a tónica no facto de este ser um ano marcado por guerras e eleições, e por aí começarei.

Duas guerras: indiferença à barbárie?

Uma tendência que transita de anos anteriores é a exacerbação dos conflitos e divisões. Não há como ignorar as duas importantes guerras a que assistimos, onde o risco é duplo. Menciona-se o de alargamento destes conflitos a uma escala regional ou mesmo global. Mas, neste momento, o risco mais premente é o da indiferença. As guerras são sempre cruéis e injustas, e o esforço pela paz deve estar sempre presente. Mas ser indiferente às atrocidades e deixar a lógica do mais forte prevalecer apenas agrava a injustiça e a desumanidade. Ser indiferente perante as guerras entre a Rússia e a Ucrânia e entre Israel e o Hamas é, de facto, dar rédea solta à brutalidade.

Como sublinha Pacheco Pereira, a guerra da Ucrânia é uma “guerra de subjugação neocolonial para toda uma região”. A hesitação no apoio à Ucrânia significa a tácita aceitação dos desmandos de um Putin autocrata em vertigem expansionista, e não é aceitável. É preciso não esquecer que há um invasor e um invadido.

Já no conflito Israel-Hamas, a desproporção da resposta israelita ao terrível ataque terrorista de 7 de outubro tem de merecer o repúdio internacional. Ao dia de hoje, o número de vítimas em Gaza ultrapassou as 22000, e a catástrofe humanitária continua a aprofundar-se.

Pouco antes do Natal, António Guterres constatou que das pessoas mais afetadas pela fome a nível global, quatro em cada cinco se encontram em Gaza, e que a ofensiva israelita é o principal obstáculo à ajuda humanitária. Duas semanas antes já os EUA tinham vetado a resolução a favor de um cessar-fogo humanitário em Gaza, ainda que Guterres tivesse invocado, nas vésperas, o artigo 99º da Carta das Nações Unidas, dado o “ponto de rutura” em Gaza.

Perante a inação e as hesitações, a resposta portuguesa enquadra-se num cenário europeu também ele bastante dividido. De facto, se a resposta à pandemia e à primeira fase da invasão russa foi marcada por elevado consenso, o conflito Israel-Hamas, e agora também o apoio financeiro à Ucrânia são fonte de discórdia, sobretudo se tivermos em conta o jogo duplo de Viktor Orbán, o que volta a levantar a questão da eficácia dos mecanismos da governança europeia – fará sentido um país que não cumpre os princípios do Estado de direito poder manter refém a União Europeia (UE)? Importa ter uma posição clara nestes assuntos, com os quais o novo governo português saído das eleições de 10 de março terá de se confrontar.

Três eleições e a sombra da extrema-direita

Outra tendência que se tem vindo a sentir a nível europeu é a influência da extrema-direita. Mesmo quando não é eleita, consegue condicionar de tal forma a agenda que chega a reclamar “vitórias ideológicas” (expressão usada por Marine Le Pen a propósito da nova lei de imigração francesa, cujo projeto-lei foi aprovado a 19 de dezembro) por muitas vezes conseguir que a direita “moderada” adote medidas de extrema-direita.

A questão das migrações é exemplar. França tem agora uma das mais duras leis de imigração na Europa. Entre outras medidas: passa a haver moratórias no acesso a prestações sociais não contributivas (cinco anos para quem não estiver empregado); deixa de ser atribuída a cidadania francesa automaticamente às pessoas nascidas em França filhas de pais estrangeiros; e ainda está previsto introduzir quotas imigratórias.

Mas não é só em França. Quase simultaneamente, a UE chegou a acordo sobre o Novo Pacto para as Migrações. O objetivo principal é o mecanismo de solidariedade entre Estados-membros com forte pressão migratória e, ao mesmo tempo, uma seleção mais apertada dos requerentes de asilo e um combate reforçado ao tráfico. Mas com a sua ênfase nos mecanismos de triagem e na possibilidade de repatriamento rápido, os riscos são enormes, como assinala uma carta aberta de 56 ONG: normalização do uso arbitrário da detenção de imigrantes, deportação para países onde os migrantes arrisquem violência, e um desrespeito generalizado dos seus direitos humanos.

Esta influência da extrema-direita é um dos riscos a ter em conta nas três principais eleições deste ano. A nível europeu, não é inconcebível o reforço do grupo Identidade e Democracia nas eleições de junho para o Parlamento Europeu e que, a acontecer, provavelmente significaria não só a contínua ênfase nas restrições migratórias mas também a tentativa de reversão das políticas climáticas.

Quanto aos EUA e às suas eleições presidenciais de novembro, resta saber se Trump, tido como o grande favorito a ganhar a nomeação do Partido Republicano, será de facto elegível em novembro. As eleições primárias do partido começam a 15 de janeiro no Iowa e, neste momento, Trump já foi excluído de se candidatar às primárias no Maine e no Colorado, pelo seu papel no ataque ao Capitólio a 6 de janeiro de 2021, aguardando-se o que poderá resultar dos recursos apresentados pela sua defesa.

Parece inconcebível que um país com a longa e consolidada tradição democrática dos EUA possa permitir a candidatura de um ex-Presidente que lançou suspeitas infundadas sobre o resultado da votação de 2020 ou fomentou uma insurreição. Mas nada é impossível, nem mesmo o segundo episódio de uma presidência errática, com tudo o que isso significaria para a política doméstica e internacional dos EUA.

Em Portugal, ver-se-á que força terá a extrema-direita nas eleições de Março e que papel poderá desempenhar na sua sequência, nomeadamente se o bloco da direita tiver uma maioria parlamentar se (e só se) a incluir – os riscos de erosão de direitos estão tão presentes cá como em qualquer outro lado.

Muitas interrogações

No que diz respeito à política portuguesa, aconteça o que acontecer nas eleições de março, os desafios são muitos. Às incertezas do cenário internacional, que incluem o do comportamento da economia europeia, que tem vindo a abrandar, juntam-se as múltiplas crises herdadas da última legislatura, porventura com os problemas de sempre à cabeça: habitação, saúde e educação.

Caso se concretize uma trajetória de crescimento económico, resta saber se a prioridade será a redução da dívida pública ou o reforço destas áreas vitais, às quais se deve acrescentar a menos citada ciência. É que os riscos de as descurar são demasiado grandes: de um SNS em colapso a um abandono ainda maior da carreira docente e à debandada forçada de investigadores, se não houver vontade de os integrar na carreira – cenários que, parece-me, nenhuma pessoa razoável quereria ver concretizados no seu país.