Márcia Martinho da Rosa, advogada e agente oficial da Propriedade Industrial, diz ao Jornal Económico que à medida que a tecnologia de Inteligência Artificial avança, há que encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos criadores humanos e a inovação possibilitada pelas máquinas. A evolução do direito de autor e conexo e direito industrial depende da forma como os sistemas jurídicos e as indústrias criativas lidarem com os desafios. “Portugal – afirma – deveria dar o exemplo e iniciar já uma discussão interna nesse sentido, já que somos vistos lá fora como um exemplo em novas tecnologias e na área digital”.
A chamada Inteligência artificial é uma nova ameaça aos autores?
O impacto da inteligência artificial (IA) no Direito de Autor é uma questão complexa e ainda em evolução, que envolve várias dimensões legais, éticas e práticas.
O uso crescente de IA por parte de todos nós para criar conteúdo, como textos, imagens, músicas, e até mesmo softwares, tem gerado vários debates sobre a autoria, a titularidade dos direitos autorais, ou copyrights e a proteção destas criações, uma vez que todo o conteúdo que é criado por um sistema de inteligência artificial teve de ser “alimentado”, situação que tem gerado discussão e levantado várias questões “quentes”.
Pode a IA vir a beneficiar de direitos de autor? O que dizem as lei em vigor?
Estamos a falar de Autoria e Titularidade. Tradicionalmente, os direitos autorais são atribuídos a um criador humano, por aplicação do nosso artigo 42º da CRP e 11º do CDAC. No entanto, com a IA a criar conteúdos de maneira autónoma ou com pouca intervenção humana, surge a questão de quem deve ser considerado o “autor ou criador” da obra. Se uma IA cria uma obra sem a supervisão direta de um ser humano, quem detém os direitos autorais? O criador do algoritmo, a pessoa que forneceu os dados para o treinamento da IA, ou a IA em si?
… nesses casos?
As posições legais atuais geralmente não reconhecem IAs como titulares de direitos de autor, pois o conceito de “autor” implica uma pessoa física ou jurídica de acordo com o nosso ordenamento jurídico. Ora, tal situação coloca as obras geradas por IA em um limbo jurídico, sem uma legislação clara que defina quem seria o titular dos direitos.
Para criar uma música ou uma pintura, a máquina recorre a milhares de pinturas e de músicas, criadas por artistas, protegidas por direitos de autor. O uso de obras protegidas para praticar IA pode ser considerado uma violação de direitos de autor ou conexos?
As práticas de IA frequentemente envolvem a utilização de grandes quantidades de dados, que podem incluir obras protegidas por direitos de autor e conexos, como textos, imagens, músicas, etc. Tal situação tem levantado questões sobre a legalidade do uso destas obras para a prática de modelos de IA, especialmente quando não há permissão explícita dos titulares dos direitos de autor e conexos. Em alguns casos, as leis do uso razoável (fair use) ou algumas situação de exceções para pesquisa podem ser invocadas, mas isso ainda depende de interpretação judicial e das leis de cada país.
Respondendo diretamente à pergunta, sim. O uso de obras protegidas para praticar IA em vários sectores, pode ser considerado uma violação de direitos de autor ou conexos, especialmente se os resultados gerados pela IA forem vendidos ou comercializados sem nenhum pagamento aos autores ou criadores originais.
O que fazer se a IA gerar versões alteradas de obras protegidas?
Quando uma IA é usada para criar uma obra derivada (por exemplo, uma adaptação ou transformação de uma obra existente), a questão dos direitos autorais fica ainda mais complexa. A IA pode gerar versões alteradas de obras protegidas, levantando dúvidas sobre a necessidade de obter permissão dos autores originais ou pagar royalties pela adaptação. Se a IA gerar uma obra que seja substancialmente similar a outra já protegida, pode haver riscos de infração de direitos de autor ou conexos, dependendo da quantidade de transformação realizada e da lei aplicável à jurisdição em causa.
O conceito de originalidade é em alguma circunstância reconhecido nas obras geradas por IA?
O conceito de originalidade, que é um requisito fundamental para a proteção dos direitos de autor e conexos, pode ser desafiante quando se trata de obras criadas por IA.
Se uma obra gerada por IA for considerada como resultado de um processo mecânico ou algorítmico, sem criatividade ou expressão humana significativa, ela pode não atender ao critério de originalidade exigido para a proteção, que eu defendo que se aplica em Portugal.
Em Portugal o Código de Direito de Autor, refere que as sucessivas edições de uma obra, ainda que corrigidas, aumentadas, refundidas ou com mudança de título ou de formato, não são obras distintas da obra original, nem o são as reproduções de obra de arte, embora com diversas dimensões. Isso implica que muitas das obras criadas por IA podem não ser elegíveis para serem protegidas por direito de autor ou conexos, o que, por sua vez, irá afectar a forma como os criadores de IA e as empresas de tecnologia vão proteger seus produtos, know how, segredos comerciais e como irão proteger o conteúdo gerado.
Voltamos à questão da ameaça. A IA afigura-se uma ameaça existencial ao Mercado de Trabalho Criativo?
O uso de IA para criar conteúdos como músicas, livros, artes digitais e outros tipos de obras criativas pode afetar negativamente o mercado de trabalho de criadores humanos.
A IA pode gerar produções de alta qualidade de forma rápida e barata, o que pode levar a uma diminuição na demanda por trabalhos humanos em setores criativos.
Isso pode gerar mais conflitos entre as indústrias de conteúdo e os criadores, que podem sentir que seus direitos estão sendo desrespeitados ou desvalorizados devido à concorrência com as criações geradas por IA.
Como é que os países e os sistemas legislativos e jurídicos estão a lidar com este assunto? E Portugal, em concreto?
Para lidar com esses desafios, muitos países estão a começar a revisitar quer os direitos de autor, quer industrial e software, procurando formas de adaptar as normas tradicionais às novas realidades trazidas pela IA.
Portugal deveria dar o exemplo e iniciar já uma discussão interna nesse sentido, já que somos vistos lá fora como um exemplo em novas tecnologias e na área digital. Em resumo, diria que a IA está efetivamente a transformar profundamente a forma e visão como entendemos a criação de conteúdo e os direitos de autor e conexos, assim como na área da propriedade industrial. Deveríamos assim iniciar um processo legislativo de regulação interna dos muitos aspetos legais e éticos que, até ao presente momento, ainda permanecem incertos.
Como antevê o futuro no campo do direito de autor?
À medida que a tecnologia de IA avança, será crucial encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos criadores humanos e a inovação possibilitada pelas máquinas. A evolução do direito de autor e conexo e direito industrial, dependerá de como os sistemas jurídicos e as indústrias criativas lidarão com esses novos desafios.
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