É como fazer um Paris Dakar, mas na costa alentejana. Clarisse Boto conduz a carrinha por estradas de terra batida, cheias de altos e baixos. Conduz mais devagar que a piloto Elisabete Jacinto pelas areias de África, mas tem a destreza necessária para fugir aos buracos enquanto descodifica tudo o que está nos campos, e que é invisível aos olhos citadinos. É o famoso multitasking feminino em ação.
À volta, hectares e hectares a perder de vista de pequenas alfaces a brotarem do chão. Destes campos, saem todas as semanas 30 toneladas de alfaces e espinafres e mais 5 toneladas de ervas aromáticas como coentros. Seguem para supermercados em todo o país, durante o verão, e também destinam-se à exportação durante o inverno, para o mercado inglês, explica a engenheira agrónoma nascida no Algarve e que lidera o departamento de agronomia da Vitacress.
Esta é a Quinta da Boavista, onde fica a sede da empresa perto de Odemira, no distrito de Beja. A companhia conta com 300 hectares de produção no total, espalhados por esta quinta, a da Azenha, também na costa alentejana, assim como em Almancil, no Algarve.
Os portugueses gostam de comer saladas principalmente no verão. No final de maio, os trabalhadores da Quinta da Boavista preparavam o primeiro fim de semana do ano com muito calor. “Graças ao tempo, não temos mãos a medir porque as encomendas dos clientes para este fim de semana foram inesperadas, altíssimas e não vamos falhar”, disse o diretor-geral Carlos Vicente durante a visita.
Já na Páscoa, passou-se o contrário. “Costuma ser um fim de semana muito bom para saladas, já há calor e os primeiros churrascos lá em casa… mas choveu. Ficámos com muito produto parado nas quintas”.
A Vitacress conta com 10% da sua área dedicada à agricultura biológica, cujos campos precisam de estar sem produção durante 2 anos, para permitir a ‘purificação’ necessária para arrancar.
Na produção nas quintas não há sazonalidade. Os solos e o clima da região permitem a produção durante o ano inteiro de alfaces verdes e roxas, rúcula, espinafres, agriões, acelgas, ervilha, salsa ou coentros.
No verão, os ciclos de produção são mais curtos: 30 dias, contra os 45/50 dias de inverno. Na recolha, a companhia recorre a dois ciclos, ao reutilizar as sementeiras: corta as folhas uma vez para voltarem a crescer; corta-as novamente, criando raízes mais profundas, dando continuidade à produção e reduzindo o consumo de recursos. Só depois são colocadas novas sementeiras para reiniciar o ciclo de produção. Começa tudo de novo, enquanto portugueses e ingleses já devoraram mais várias toneladas de alface num abrir e piscar de olhos.
Destes campos os legumes partem para a segunda fase do processo, para a fábrica que fica uns quilómetros acima. Nesta unidade, ficam a repousar à entrada para dar início ao ciclo do frio. Entrando neste ciclo, as saladas só saem quando forem compradas num supermercado por uma família. O frio aqui é constante e longe dos mais de 30 graus que se fazem sentir lá fora no final de maio : 4 graus para manter a frescura dos produtos acabados de apanhar.
A visita aqui é guiada por Lídia Bousselier, responsável pelo departamento de qualidade. Apesar do apelido francês, é portuguesa. Sente-se em casa nesta unidade ao explicar como os legumes são tratados ao longo de todo o processo até serem embalados.
Nas diversas fases, os legumes são monitorizados recorrendo a diversa tecnologia, incluindo raios laser e um detetor de metais para garantir que as saladas chegam ao seu destino sem surpresas desagradáveis.
“As saladas são colhidas de manhã e são logo entregues na fábrica, ficando imediatamente numa área protegida a quatro graus, e ficam nesta temperatura até ao momento em que são compradas pelos consumidores. É esta preservação que dá uma vida útil de 10 dias às saladas, preservando os seus nutrientes”, explica Carlos Vicente.
Odiretor-geral destaca que entre a colheita e a chegada do produto à prateleira do supermercado passam 48 horas. “Eu quero que esteja lá no dia seguinte. Isso é possível e é o nosso objetivo. Mas como temos que gerir stocks, gerir volumes e misturas, ou seja, para produzir uma salada ibérica temos que ter no armazém alface verde, roxa e rúcula nas quantidades certas e isso nem sempre é possível”, explica o gestor.
A companhia chegou a vender para a restauração biológica na Alemanha, que é “super premium”, mas o “negócio não fazia sentido” para a Vitacress. “Tivemos prejuízo porque não tínhamos volume suficiente. Eram folhas lindíssimas, mas muitas sensíveis, tínhamos depois muitas quebras. Foi uma lufada de ar fresco para a equipa toda. O nosso negócio é fazer saladas para alguém que goste de comer todos os dias, ou várias vezes por semana, com variedade, qualidade e frescura. Este é o nosso público-alvo”.
Sobre a intenção de alargar o perímetro de rega do Alqueva a esta região, Carlos Vicente elogia a ideia. “Seria muito importante. Em Portugal temos abundância de água, não temos falta. O problema é a gestão. Recebemos quatro vezes mais água do que Espanha, o problema é que temos longos períodos de seca e depois vem tudo de uma vez”.
Odemira encontra-se entre os concelhos portugueses com mais população estrangeira: 42% dos seus habitantes vieram de fora, o segundo valor mais elevado a nível nacional, apenas ultrapassado por Vila do Bispo no Algarve (44%). Dos quase 11 mil estrangeiros a residirem no concelho em 2021, mais de metade vinham da Índia e do Nepal.
O tema da imigração e dos direitos humanos e laborais dos trabalhadores migrantes ganha um peso especial no setor da agricultura nesta região.
A empresa conta com um total de 420 trabalhadores, sendo o segundo maior empregador na região de Odemira. Entre os seus quadros, encontram-se mais de 18 nacionalidades. Os estrangeiros representam 28% do total; com 46% de mulheres. Deste total, 90% dos trabalhadores têm vínculo efetivo. Entre os estrangeiros, 97% conta com contratos permanentes.
O inglês é a linguagem funcional na empresa, facilitando a comunicação e promovendo a integração de todos. Com diferentes culturas e religiões na empresa, uma festa de Natal recente virou um filme de Bollywood com os trabalhadores a serem os figurantes principais da coreografia; durante o Ramadão, os trabalhadores muçulmanos mudam os turnos para conseguirem conciliar o trabalho com a religião, segundo Rita Ferreira, diretora de recursos humanos.
A companhia é detida pelo grupo português RAR, sediado no Porto. A Vitacress gerou vendas de 43 milhões de euros em 2024, um crescimento de 9% face ao ano anterior. Para este ano, prevê novo crescimento de 9% para os 47 milhões de euros.
A grande ambição é crescer no mercado espanhol nos próximos anos. Espanha já pesa 13% nas vendas e a produtora de saladas embaladas prevê que o país vizinho venha a pesar 20% no volume de negócios até 2030.
“Queremos crescer em Espanha. É possível, espero que sim”, disse Carlos Vicente sobre a subida do peso de Espanha para um quinto das vendas totais. A companhia vai ter um “novo cliente de maior dimensão a entrar” este mês em Espanha. No pais vizinho, a marca pode ser encontrada nas prateleiras dos supermercados Carrefour, por exemplo.
“O cliente tem uma plataforma de maior volume para abastecer o mercado espanhol”, afirmou o responsável.
Apesar do tom positivo, a empresa reconhece os “desafios” deste mercado: “a concorrência local”, para começar, com a empresa a diferenciar-se ao apostar na venda de batata e produtos biológicos de “qualidade”, pois os concorrentes em Espanha “não têm volume” nestes segmentos. “Outro desafio é a parte logística: chegar de Odemira a Madrid faz-se bem, mas chegar de Odemira a Málaga… tem de ir a Madrid e depois descer. No momento em que tenhamos um camião cheio para Málaga, será fácil entrarmos noutra lógica de negócio”, explicou.
Além de Espanha, também vende para o Reino Unido, mas apenas alfaces inteiras, para serem processadas pelos seus clientes. Este mercado pesa 7% no total de vendas, mas a marca não surge nas prateleiras dos supermercados britânicos.
Em Portugal, mercado responsável por 80% das vendas da empresa, é a marca líder do mercado fora as marcas próprias das cadeias de distribuição, mas a Vitacress também é responsável por fornecer saladas a várias cadeias, com as marcas brancas.
Durante a visita à empresa realizada no final de maio por jornalistas e por fornecedores e cliente, a ideia era mostrar as boas-práticas da Vitacress ao público e também aos seus parceiros: o programa Second Nature que visa aumentar a sustentabilidade da empresas e a sua ambição em atingir carbono zero em 2040. Em jeito de comparação, o líder da empresa destaca que o “consumidor inglês é muito mais crítico quanto à sustentabilidade e também quanto aos direitos humanos. Os clientes de Inglaterra têm departamentos inteiros que se dedicam a estes temas e fazem auditorias, visitas aos clientes, aos fornecedores”, uma tendência crescente por cá, mas ainda a dar passos.
“Isto não é só para abraçar as árvores. Gostamos de árvores e dos bichos, mas também é importante que entendamos que a sustentabilidade tem que ter sustentabilidade económica e também de recursos humanos. Se não tivermos emprego e não houver interesse económico em investir nestas iniciativas…”, conclui o líder da Vitacress.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com