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Quando um vírus serve para tentar legitimar as democracias musculadas

Populações são condescendentes com limitações no contexto de estado de emergência, mas há governos que tendem a exagerar as intrusões e a eternizar as medidas de exceção. Os suspeitos são os do costume.
29 Março 2020, 19h30

Vem nos livros: quando ocorre um acontecimento que obrigue a uma resposta de emergência, as democracias ‘musculadas’ – um eufemismo para referir regimes autoritários com maior ou menor quantidade de cosmética para disfarçar – aproveitam sempre para institucionalizar as suas práticas ou aumentar a sua incidência.

Na União Europeia – e apesar de haver motivos para se imaginar que essa prática não acontece, até por via dos acordos de entrada – acontece o mesmo e não terá deixado ninguém admirado que a Hungria surja no topo da lista das preocupações de Bruxelas.

Os suspeitos do costume: Hungria
O regime do primeiro-ministro Viktor Orbán – insistentemente avisado por Bruxelas, no passado recente, de que o país poderia perder parte dos seus direitos comuns – está a usar o alegado combate à pandemia da Covid-19 para impor uma agenda que é, afinal, a mesma de há uns dois anos a esta parte: intromissão do executivo na área da Justiça, supressão da liberdade de imprensa, reforma compulsiva dos que, no aparelho do Estado, tentam impedir estas medidas.

Desta vez, Viktor Orbán – que alguns, nomeadamente Steve Bannon, ex-estratega de Donald Trump, consideram o mais importante dirigente europeu da extrema-direita – tentou impor o estado de emergência de forma temporariamente indefinida, o que lhe permitiria ter acesso a um regime de exceção em tudo idêntico à sua agenda de emagrecimento das liberdades civis.

O parlamento húngaro conseguiu bloquear a primeira tentativa do executivo de estender indefinidamente o estado de emergência, mas a Comissão Europeia viu-se obrigada a intrometer-se no assunto: no início desta semana, lembrou ao governo húngaro as suas obrigações em relação às leis europeias relativas ao respeito pelos direitos humanos e insistiu que qualquer medida adotada pelos Estados-membros com o objetivo de combater o coronavírus deve ser “temporária” e “proporcional”.

A situação de estado de emergência permitiria a Orbán governar por meio de decretos – ultrapassando assim o maçador envolvimento parlamentar –, mas uma segunda votação está prevista para a próxima semana, apesar de toda a oposição, da esquerda à extrema-direita, ter rejeitado a proposta na primeira votação.

O porta-voz de Orbán, Zoltán Kovács, garantiu que a natureza indefinida do estado de emergência resulta do caso de os deputados não poderem ir ao parlamento devido à pandemia – explicação que, no mínimo, é risível. O problema é que, na segunda votação, a lei passará apenas com uma maioria de 66%, quando na primeira precisava de 80%.

Os suspeitos do costume: Polónia
A Polónia é caso idêntico. Será de recordar que a Comissão Europeia acionou contra aquele país, no final de 2017, o famoso o artigo 7.º do Tratado da União Europeia, que implica o afastamento temporário de um Estado-membro da intervenção nos destinos do projeto europeu. As suas faltas era passadas a papel químico do caso húngaro, nomeadamente no que tinha a ver com o reordenamento do sistema jurídico.

Ora, desde há uma semana que o primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, impôs o estado de emergência para conter a propagação do novo coronavírus, como forma de executar adequadamente a quarentena e outras medidas preventivas, com “novos regulamentos que também impõem novas obrigações à sociedade”, segundo palavras do ministro da Saúde, Lukasz Szumowski.

Será de recordar que, na última quinzena de dezembro de 2019, a câmara baixa do parlamento polaco aprovou uma lei que penaliza os juízes que questionarem a legitimidade de quaisquer mudanças legislativas realizadas pelo governo.

Tanto a Comissão Europeia como o Conselho Europeu e o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos criticaram a medida – que levanta mesmo a possibilidade de a Polónia ter de deixar a União Europeia. O caso é, por isso, para seguir ao pormenor.

Os suspeitos do costume: Rússia
Ainda ali para os lados da Europa de leste, a Rússia também está a ser alvo de atenção. Esta quarta-feira, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) emitiu um comunicado em que afirmava que “a resposta à pandemia do coronavírus não deve impedir o trabalho da comunicação social na Rússia”. “Estou preocupado com algumas restrições indevidas às atividades de vários órgãos de comunicação social neste contexto” de pandemia, afirmava o representante da OSCE para a Liberdade de Imprensa, Harlem Désir, num comunicado.

A Rússia tem uma agência reguladora da imprensa, a Roskomnadzor, o que aparenta ser sempre um mau sinal, e segundo a OSCE está a intrometer-se nas agendas e nas linhas editoriais de alguns jornais, sob a desculpa de ter de impedir a difusão de notícias falsas.

“Entendo perfeitamente a necessidade de combater informações falsas no contexto da pandemia de Covid-19, mas quero enfatizar o papel fundamental da imprensa em fornecer informações importantes ao público e em combater as notícias falsas sobre a pandemia”, acrescentou Harlem Désir.

A Roskomnadzor exigiu que a estação de radio Echo of Moscow excluísse da sua programação o talk show (sobre o coronavírus) “Minority Opinion” com Valery Solovey, um analista político caído em desgraça (política) no verão passado. A agência também solicitou que o jornal online “Govorit Magadan” fosse bloqueado depois de divulgar a história de um alegado infetado que morreu após uma semana no hospital sem que a instituição lhe atribuísse uma causa.

As populações tendem a ser condescendentes com as limitações à liberdade civil e individual num contexto de emergência – onde há outras prioridades a considerar, mas as autoridades estão a monitorizar não só a ‘largura de banda’ dessas limitações, como a sua eventual excessiva extensão temporal para lá do limite do necessário. E os estados de emergência ainda só levam uma semana de vida!

Artigo publicado no Jornal Económico de 27-03-2020. Para ler a edição completa, aceda aqui ao JE Leitor

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