Agora que se discute e avalia ao mais alto nível o regime jurídico do ensino superior em Portugal (RJIES), avaliação feita depois de 15 anos de aplicação desse regime, conclui-se que é tempo de inflectir e corrigir erros graves, seja de legislação, seja também no lastro que ficou para universidades e institutos cada vez mais funcionalizados, regidos por uma lógica de indústria e competição empresarial, pejados de precariedade, inibidos de rasgo cívico.

Esta avaliação devia ter tido lugar ao fim de cinco anos de aplicação. Foi preciso esperar o triplo do tempo para que, finalmente, seja ponderada uma outra resposta à pergunta “Que universidade e ensino superior queremos?”

Alberto Amaral coordenou a Comissão Independente designada pelo Governo, de que resultou o Relatório presentemente em discussão pública. No seu Sumário executivo, a opinião agregada de um grande número de participantes do inquérito feito é a de que o actual quadro jurídico correspondeu “a perda de democraticidade, a desmotivação dos membros da Academia e a falta de identificação com a atividade da instituição, a concentração de poder, o aumento do clientelismo, do compadrio, da corrupção de valores e do ressentimento, o divórcio entre a comunidade académica e os dirigentes.” A avaliação negativa não poderia ser muito mais contundente.

Muito em particular é alvo de crítica a figura do Conselho Geral, órgão máximo das instituições de ensino superior. O problema não é haver um Conselho Geral, mas este ser, sobretudo, um colégio eleitoral, o que torna a sua composição refém de listas constituídas fundamentalmente para eleger um reitor ou uma reitora, cada membro escolhido pelo seu apoio indefectível, enquanto grande eleitor, a um candidato. Desempenho importante, sem dúvida, mas muito limitado, e que torna refém de um acto eleitoral todo o mandato subsequente de conselheiro geral, cargo que deveria revestir a maior dignidade numa universidade ao longo de um período de quatro anos.

Por outro lado, o facto de os conselheiros gerais eleitos cooptarem outros, personalidades da sociedade, com um mandato democrático muito mais débil, mas com igual poder para a eleição reitoral, bem como o facto de a eleição do presidente do Conselho Geral se fazer entre os membros cooptados, corrói muitíssimo a densidade democrática das lideranças das universidades públicas portuguesas. Acresce que estes mesmos conselheiros gerais, deliberam, por exemplo, a criação de unidades de investigação, mesmo podendo não dispor de qualificação científica relevante.

Houve falta de democracia, mas também mau desenho legislativo. Quinze anos depois o lastro na vida do ensino superior é pesado. A alternativa é voltarmos a ter reitorias lideradas por quem foi escolhido pela maioria da comunidade académica, envolvendo no acto, de forma proporcionada, os três corpos – estudantes, docentes e investigadores, funcionários. E deixar as decisões científicas a quem está preparado para as tomar.

O que vale para a reitoria vale, à sua escala, para as presidências das faculdades. Também para estas, a eleição deveria ser universal e directa entre os diversos corpos que compõem a comunidade académica. Na verdade, no actual cenário jurídico, só as presidências de Departamento são diretamente eleitas pelos colegas.

Sem democracia nas universidades, menos as universidades contribuem para a democracia do país. É crucial resgatar uma concepção de universidade como instância e lugar de governo democrático, importantíssimo primeiro espaço público para estudantes, honrando uma história de protagonismo de debate, consciência crítica e liberdade. E que ainda fará muita falta ao país.

Além desta grande discussão, que o Relatório não evita, são ainda construtivamente sumariados seis grandes desafios: a demografia, que tende a impor um decréscimo de alunos no ensino superior; a elitização da oferta formativa, com cursos e instituições para ricos; a falta de renovação geracional do corpo docente; a elevada endogamia no acesso à carreira e nas progressões; a precariedade associada à contratação barata como “docente convidado”; a situação igualmente precária dos investigadores.

Destes, dois estão a montante do ensino superior, dependentes de políticas que garantam a renovação geracional da população portuguesa e de uma mais efectiva igualdade e oportunidades no ensino secundário (em vez da cultura de quadros de honra que tem tanto de meritocrática quanto de assistida por explicadores pagos por quem os pode pagar).

Mas os outros quatro desafios estão no coração da pergunta sobre o que queremos que seja o ensino superior em Portugal, cuja resposta deve traduzir-se na forma de um regime jurídico.

É preciso garantir uma carreira estável para os investigadores. O estatuto dos professores convidados tem de ser especificado de forma mais precisa, no sentido de evitar que se constitua como uma forma de contratação escandalosamente barata e que perpetua vínculos precários que raiam a exploração. A permissividade face a falsos professores convidados consagra uma perspectiva de castas de que todos somos cúmplices enquanto a legislação não for alterada.

Cada ano que passa, um grupo significativo de colegas doutorados do ensino superior vê o seu salário a aproximar-se do salário mínimo nacional.

Era preciso outro financiamento, outro compromisso com a ciência, outro compromisso com o combate à precariedade e outra afirmação do governo democrático das instituições de ensino superior em Portugal. Mudar o RGIES é um passo essencial, que só peca por tardio. Quinze anos depois, dez anos depois do prazo legal estabelecido, era preciso que o debate sobre o ensino superior que queremos fosse um sobressalto.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.