Desde que Montesquieu aproveitou o trabalho anterior de Locke para fazer a tripartição dos poderes que ficou clara a separação das esferas legislativa, executiva e judicial. Até porque cada poder dispõe da faculdade de estatuir na sua área e de impedir a entrada dos outros poderes nas suas competências.

Porém, a circunstância de o poder executivo ser partilhado por dois órgãos de soberania quando o sistema de governo é semipresidencialista acaba por criar zonas cinzentas. Daí que, no caso português, sobretudo nos períodos de coabitação, já se tenham verificado várias situações em que o Governo se queixou de interferência do Presidente da República ou vice-versa.

Ora, numa conjuntura temporal em que Marcelo Rebelo de Sousa anunciou uma recandidatura de que todos os portugueses já tinham a certeza, o referido déjà-vu fez questão de justificar a designação. Assim, depois de ter chamado a Belém as ministras da Saúde e da Justiça, desvalorizando os encontros semanais com o primeiro-ministro, Marcelo recebeu o Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública, Magina da Silva, numa reunião destinada a apresentar as condolências presidenciais pela morte de um agente da PSP.

Uma atitude nobre, não fosse o caso de, à saída da reunião, o Diretor da PSP ter dito que tinha estado a apresentar ao Presidente da República a ideia da criação de uma Polícia Nacional que integrasse a PSP e o SEF. Uma matéria que, como é óbvio, não faz parte da agenda de uma audiência de condolências e não apenas pelo respeito à memória do agente.

Uma situação que a Ciência Política tem dificuldades em enquadrar partindo do pressuposto que Portugal é um Estado de Direito. Mesmo aceitando que a confusão parece instalada em São Bento e que o Presidente da República está, de momento, impedido constitucionalmente de dissolver a Assembleia da República, não se torna fácil explicar esta atitude presidencial.

Marcelo Rebelo de Sousa sabe que António Costa está em rota de colisão com Pedro Nuno Santos, a quem teve de desautorizar depois de provavelmente saber por terceiros que o ministro pretendia levar a votos o plano de restruturação da TAP. De igual forma, não desconhece que só a pertença de Eduardo Cabrita ao reduzido núcleo duro costista o mantém à frente da pasta da Administração Interna depois da indignação coletiva provocada pelo assassinato de um cidadão ucraniano nas instalações do SEF. Mais um fogo a apagar num percurso governativo marcado por polémicas.

Magina da Silva saiu de Belém a anunciar que tinha apresentado de forma muito direta a sua opinião sobre a reorganização dos serviços policiais que estão na dependência de Cabrita. O posterior esclarecimento não retira gravidade nem à comunicação inicial, nem à decisão presidencial de ouvir a opinião de um subalterno sobre aquilo que deveria ter sido objeto de análise e discussão com o titular da pasta e o líder do Executivo. Maquiavel ensinou que o príncipe deve ouvir a opinião dos conselheiros apenas sobre aquilo que quiser. Por isso, Marcelo não estava obrigado a escutar o Diretor da PSP.

Depois da revisão constitucional de 1982, o semipresidencialismo português passou a mitigado. O Governo deixou de responder politicamente perante o Presidente da República e este só preside ao Conselho de Ministros se para tal for convidado. Uma realidade que o Presidente constitucionalista conhece, mas que parece estar a esquecer.