Há gestos fundadores que se inscrevem na história de um lugar. Neste caso, esse gesto partiu do Marquês de Pombal e da ordem que deu para se plantarem 331 amoreiras, entre as décadas de 1760 e 1770, para alimentar o processo de transformação e produção das fábricas de seda construídas na zona que veio a chamar-se Amoreiras, no âmbito do plano de renovação urbanística da cidade pós-terramoto. Um segundo momento terá sido o “terramoto” Maria Helena Vieira da Silva e o nº. 1 do Alto de São Francisco, junto à Praça das Amoreiras, em Lisboa, casa e local de trabalho da pintora e do seu marido, Arpad Szenes.
Uma vez mais, o lugar importa, pois o tempo que Nuno Faria, recém-nomeado diretor do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva, em Lisboa, investiu a conhecer o espaço e a história do museu, contemplou também outro vetor fundamental nesta equação, para além de ler e pensar o edifício: “Sentir, ouvir o edifício”. Porquê? Porque o projeto que marca o início da nova era do museu, a partir de 20 de novembro, tem como objetivo contar histórias.
“A lógica discursiva vai ser uma lógica muito menos da história da arte, que também vamos abordar, e mais de outras histórias para recuperar, refazer, uma ligação que acho que se foi perdendo, paulatinamente, entre os museus e os seus públicos”. E não se refere a este museu em particular, mas sim aos museus, genericamente. E também “à ligação que se foi perdendo entre nós. Nós, os humanos.” A explicação vem de imediato. “O valor facial da palavra está em erosão muito pronunciada, e as palavras são coisas importantes, são coisas mágicas. Eu gostava muito que este museu tivesse esse fôlego, um fôlego poético, em que o museu tem, como o Georges Bataille dizia, uma besogne, uma ‘tarefa’, mas, ao mesmo tempo tem uma beleza sonora e constrói também um imaginário”.
“Os museus podem ser dispositivos e lugares muito especiais, porque são lugares que definem uma espécie de limiar. A partir do momento em que passamos a porta do museu, por muito dessacralizada que seja essa experiência, como hoje em dia também é nas igrejas, estamos num lugar outro. E esta ideia de ser um lugar outro é uma ideia que a mim me interessa, que o museu seja também um dispositivo, como devem existir outros, para recuperar o potencial da troca, da escuta, das conversas”, explica Nuno Faria nesta entrevista exclusiva ao JE.
“Os museus têm de ser um lugar de encontro. Por um lado, um encontro entre quem visita e aquilo que vê, mas, por outro lado, um encontro entre pessoas, e delas com as histórias que os museus podem contar. Esta exposição foi completamente construída a partir de histórias, e tem mil e uma histórias dentro”.
Vieira da Silva, “uma artista incomensurável”
O projeto expositivo, que decorrerá entre 20 de novembro de 2024 e 31 de dezembro de 2025, assinalando o 30º. aniversário do museu, pretende ser uma exposição em constante transformação, metamorfose, que se desdobra em cinco momentos. O primeiro intitula-se “O Tecido do Mundo” (20 novembro – 9 fevereiro) e pode ser o começo de uma história: 331 Amoreiras em Metamorfose. “Acho que as pessoas estão prontas para ouvir histórias. Querem ouvir histórias e querem partilhá-las. E acho que as pinturas, as obras de arte não podem ser um fim em si mesmo. Nunca foram, nem para os artistas. Podem ser um ponto de partida, mais do que um ponto de chegada. E é aí que estamos a trabalhar”.
O potencial de possibilidades parece infinito, na medida em que Vieira da Silva “é uma artista incomensurável e, nesse sentido, transcende em muito o tempo em que viveu e mesmo o tempo histórico, no sentido até artístico do termo. Por isso a sua obra é, ao mesmo tempo, tão fascinante e tão complexa”, frisa Nuno Faria. “A instituição foi construída como uma constelação de obras que têm um ponto de união, a obra do Arpad e da Vieira e que estará em todos estes momentos. E, depois, um conjunto de outros artistas que trazemos para dialogar entre eles. Nacionais, internacionais, de várias gerações, nomes muito importantes”, salienta antes de referir que “a lista é suculenta e bastante entusiasmante”.
Ilda David, Jorge Feijão, Cesariny, Pedro A.H. Paixão, Robert Rauschenberg, Frida Baranek, Ana Hatherly, Maria Capelo, Ana Jota, Fernanda Fragateira e Rui Moreira – presente neste primeiro momento com “um desenho que lhe foi ditado por um sonho, a partir de um poema do Herberto Helder”, realça Nuno Faria – são apenas alguns dos mais de 80 artistas, portugueses e estrangeiros, contemporâneos ou não de Vieira da Silva e de Arpad Szenes, que integram o programa que se estende até 31 de dezembro de 2025.
Partilhar ideias e soluções para os museus
Os cinco momentos estão desenhados, mas com uma curadoria “sem chão”. Na perspetiva de Nuno Faria, a exposição sai “um pouco fora do cânone dos dois artistas, o que me parece interessante. Mas, ao mesmo tempo, é uma espécie de terreiro experimental de novas associações, relações. Queremos trabalhar com vários artistas e muito também com a obra da Vieira e do Arpad, e mostrarmos coisas que são muito pouco vistas”.
Mas não só. Também seduzir os diferentes públicos a reencontrar o Museu, até porque “as pessoas estão com muita expetativa”, sublinha Nuno Faria. “É o que eu sinto, é um museu de que gostam muito”. Mas, de facto, refere, “atualmente, estamos a relacionar-nos demasiado com coisas que não existem e o museu é algo tangível, existe. Há uma sensibilidade material que nos faz falta e que temos de recuperar”. “É isso que nós vamos aqui tentar fazer, claro. Este museu sobrevive há 30 anos, porque tem uma equipa muito dedicada. E porque é um museu que tem uma força vital muito grande, porque está neste lugar”. E conclui, “é um privilégio estar a fazer isto. Não conheço uma pessoa que diga que não gosta deste museu… Isso é um capital”.
E como está Lisboa em termos museológicos? “Lisboa tem, hoje em dia, uma conjuntura que nunca teve, em termos de instituições que se dedicam à arte contemporânea. E com uma pluralidade de programadores muito interessante. Homens, mulheres, portugueses, estrangeiros… Sinto que há uma grande energia entre nós todos e há uma partilha que está a ser feita a vários níveis, e acho que vai crescer”. Ou seja, salienta, existe “uma solidariedade entre programações, de obras que circulam entre instituições que enriquecem muito. Nós vamos ter obras do CCB, da Gulbenkian, de Serralves nos cinco momentos”.
Não só a partilha de ideias, mas também a busca de soluções para a viabilidade dos museus. “Discutimos projetos de mediação, projetos pedagógicos, porque há muitos desafios, e é tudo transparente e partilhado. Outra coisa que não é negligenciável é a ideia de zeitgeist, o espírito do tempo, que, de facto, partilhamos”. Sobre a inspiração dos curadores, diz que “existe uma sensibilidade e uma observação das coisas”. “Cheguei a este programa não porque copiei alguma coisa de outro lado, mas porque há uma sensibilidade para o que se está a passar. E a forma como as coisas emergem em determinados momentos, não é por acaso também. E não tem a ver com operações de mercado necessariamente. O público é soberano – sempre – como o Marcel Duchamp dizia. O público é a posteridade”.
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