Se forem respeitados os prazos de transposição da Diretiva ECN+, o início de 2021 trará a segunda reforma substancial da legislação nacional da concorrência no pós 2003. As normas substantivas não mudam – isto é, as proibições existentes mantêm-se – mas tudo indica que se reforçarão ainda mais os poderes da Autoridade da Concorrência (AdC) na condução de investigações a práticas suspeitas de restringirem a concorrência e reforçará também a moldura sancionatória aplicável às infrações.

É consensual a ideia de que o enforcement das normas de concorrência é crítico para assegurar a competitividade dos mercados e originar benefícios para os consumidores. É também facto assente que no âmago da política de enforcement da generalidade das autoridades de concorrência estão buscas a empresas, onde se recolhe o grosso da prova com que se faz a instrução dos processos.

No caso da AdC, o reforço dos poderes chega numa altura em que alguns têm lançado dúvidas de que venham a ter algum uso nos tempos mais próximos (os tempos Covid) em que nos aproximamos do final do ano sem que a Autoridade tenha, tanto quanto se sabe, realizado qualquer busca. São, tudo indica, dúvidas infundadas. Basta olhar para o lado para ver que a autoridade da concorrência espanhola já retomou as buscas e que será uma questão de tempo até que a AdC lhe siga o exemplo. Os tempos mudam e as autoridades adaptam-se.

Tive já a oportunidade de assinalar os sérios desafios colocados pela compatibilização das soluções da Diretiva ECN+ com a Constituição da República. Não é altura de retomar o tema. Importa, porém, sublinhar que mais poderes e sanções mais pesadas trazem consigo mais responsabilidade. A única forma de exercer esta responsabilidade é com transparência. E em que é que esta se traduz? Em decisões claramente fundamentadas que possam ser entendidas e sindicadas pelos destinatários e escrutinadas pelos tribunais. Sem fundamentação não há transparência.

As normas de concorrência não podem ser tão importantes que levam o legislador a conceder à AdC poder para espreitar o WhatsApp, mas dispensá-la depois de fundamentar muito bem as coimas que aplica ou as diferenças de coimas entre as empresas e entre os indivíduos condenados. Reforço de poderes e de sanções ao dispor do enforcer sem um concomitante reforço da responsabilidade de explicar e fundamentar decisões não trará nada bom. Se, para além de ter um poder inaudito e crescente, a Autoridade o puder usar discricionariamente sem fundamentar claramente as suas decisões, fica ferido de morte o Estado de Direito e obscurantiza-se a política de concorrência.