A avaliar pelos projetos de revisão constitucional, PS e PSD preparam-se para servir os nossos metadados aos Serviços de Informações numa bandeja de prata. Os dois principais partidos do regime divergem em muitas coisas, mas neste ponto parecem estar em sintonia.

A questão não é nova, uma vez que já por duas vezes foi aprovada legislação para permitir aos oficiais dos Serviços de Informações o acesso aos dados relativos às comunicações dos cidadãos, com o objetivo de prosseguirem as suas competências de prevenção do terrorismo, atos de sabotagem e espionagem, criminalidade organizada e subversão do Estado de Direito. Acontece que, também por duas vezes, em 2015 e em 2019, o Tribunal Constitucional lembrou a Assembleia da República de que entre os direitos fundamentais dos cidadãos está o sigilo das comunicações, que só pode ser quebrado no âmbito de um processo criminal em curso (nº 4 do artigo 34º).

Surpreende este consenso formado em torno da necessidade de permitir aos Serviços de Informações o acesso aos metadados, ainda que para tal seja necessário rever a Lei Fundamental e reverter a jurisprudência constitucional. Por duas razões principais.

Em primeiro lugar, porque se trata de imensa informação sobre a vida das pessoas. Com exceção do conteúdo das conversações ou mensagens, é tudo o resto: fonte, destino, data, hora, duração, tipo de comunicação, localização, etc. Ora, se x liga a y significa que estes se conhecem. Se x liga a y regularmente significa que são próximos. Se x está em tal parte e liga a y, que vai a caminho de tal parte, significa provavelmente que se vão encontrar. Se voltaram a ligar-se mais tarde, quer dizer que a essa hora já não estão juntos.

Não devia ser necessário lembrar, mas ter informação sobre a vida privada das pessoas significa ter poder sobre as pessoas. E, quanto mais informação, mais poder.

Em segundo lugar, surpreende porque não existe um bom argumento para abrir esta brecha no direito dos cidadãos à não interferência das autoridades públicas nas suas comunicações. Se os Serviços de Informação não podem prosseguir as suas competências sem esta informação, pergunta-se o que têm andado a fazer até agora.

O argumento mais vezes repetido em favor desta solução é o de que todos os serviços congéneres dos outros países europeus, de alguma forma, têm acesso aos metadados dos cidadãos, pelo que os serviços portugueses ficam em desvantagem.

Contudo, este argumento faz lembrar o que o meu filho de 11 anos utiliza para pedir um telemóvel aos pais: “lá na escola todos os outros meninos têm”. Ainda que repetido à insistência, esta linha de argumentação não resiste à pergunta que sempre se segue: “mas exatamente para que é que tu precisas de um telemóvel?”. A resposta, evidentemente, é “para poder falar com os pais!”. Pois é, acontece que os pais desconfiam que, por cada chamada feita ou atendida, haverá baterias descarregadas a jogar e a ver vídeos no youtube e, quem sabe, outras coisas piores.

O mesmo vale para os Serviços de Informações: o que nos garante a todos nós, cidadãos, que os nossos metadados vão ser recolhidos apenas quando estritamente necessário e utilizados para as finalidades certas? E que vão ser guardados em segurança? E depois destruídos no mais curto prazo possível?

Tal como o meu filho, os Serviços de Informações nacionais querem um smartphone, para não ficarem em pouco junto dos colegas. Mas um smartphone custa caro e faz demasiadas coisas, algumas delas pouco recomendáveis. Por mim, ficaria bem mais descansado com um Nokia dos antigos, sem jogos e sem acesso à internet. Assim não há abusos ou, pelo menos, o risco é bem menor.

PS e PSD vão ter de se decidir: ou querem pintar a revisão constitucional como “amiga” dos direitos fundamentais; ou embrulham os nossos metadados em papel colorido e os oferecem de presente aos Serviços de Informações. Caso contrário, com amigos assim…