[weglot_switcher]

Rita Marrafa de Carvalho: A “privilegiada um bocadinho beta” levou-nos à multicultural Margem Sul

O Seixal foi a escolhada jornalista Rita Marrafa de Carvalho para um passeio. Viveu neste concelho mais de 20 anos e foi também aqui que deu os primeiros passos na carreira que abraçou.
26 Abril 2017, 12h27

A rádio era aqui, não era professor?”. A pergunta é retórica. Rita sabe a resposta. “E continua a ser”, responde-lhe Manuel Pires, que acompanha a visita. Hoje já não está na Escola Secundária Manuel Cargaleiro, no Seixal, onde nos encontramos, mas naquela época, quando Marrafa de Carvalho estudou por aqui era ele o presidente do conselho diretivo. “Foi ele que tratou desta visita”, recordara-nos, minutos antes, ainda no carro, a jornalista da RTP. “Telefonei-lhe, disse-lhe que queríamos fazer esta reportagem aqui e perguntei-lhe a quem tinha de ligar para pedir autorizações. E ele respondeu-me: ‘Já não estou na escola, mas eu trato de tudo. Dá-me meia e eu já te ligo’”, conta com um sorriso, quase infantil. E tratou. Tratou e faz questão de acompanhar a visita guiada.

Estamos na biblioteca. As persianas estão fechadas e quase não entra luz no amplo espaço corrido a armários cheios de livros. As mesas, imaculadamente limpas e arrumadas, estão vazias. “Estamos em férias escolares, é natural que a escola esteja vazia”, justifica-se o professor, como que adivinhando os nossos pensamentos. Rita segue na frente. Segura de cada passo, reconhece cada recanto. Vira à direita para uma ponta da biblioteca. “Mas a rádio agora é mais pequena. Isto vinha até aqui”, recorda. Isto é a uma parede de contraplacado, que reduziu para metade o espaço ocupado pela rádio da escola. “Verdade”, anui o professor. “Mas o resto está igual”, diz Rita Marrafa de Carvalho com uma gargalhada. Os gravadores, a mesa de mistura antiga, gasta, já sem os botões originais. Rita pega um microfone. “Tão levezinho, parece de brincar”, diz com uma gargalhada. Coloca-se na base, puxa a cadeira castanha e senta-se. A mão direita está em cima dos botões da mesa de mistura e a jornalista ensaia uma emissão de rádio para a objetiva do Nuno Canhoto. Foi ali que tudo começou.

Mas… voltemos ao início. O convite do Jornal Económico havia sido aceite na hora. A marcação ficou primeiro para uma terça. Haveria, dois dias mais tarde, de ser mudada para quinta. Rita, 39 anos, escolheu como pano de fundo para o Sair Com um regresso às origens. “Margem Sul. Vamos à Margem Sul. Foi lá que cresci. Vamos à baía do Seixal e à escola onde estudei”, informa.

Hora combinada, ponto de encontro marcado junto à Igreja da Memória, na Ajuda, em Lisboa. Uma questão de conveniência. Escriba, fotógrafo e Rita moram no mesmo raio de um quilómetro.
Marrafa não vem sozinha. Com ela, Mariana, a filha mais velha, 11 anos. Vamos todos juntos no carro. Rita entra para o banco do pendura. Depois das saudações da praxe, informa: “Há duas coisas que tenho de fazer, uma é acabar de comer e outra é maquilhar-me”, diz, enquanto mastiga ligeiramente um pão que vai a meio. “A situação não é nova para mim”, avisa, enquanto puxa a pala que tem à frente, para ajustar o espelho que lhe permitirá retocar-se. “Sempre que saio em reportagem de última hora, na RTP, e não tenho tempo de me maquilhar, é no carro que o faço. Os meus colegas já sabem que não há curva mais arriscada que me perturbe. Sai sempre bem”.

Do banco de trás, ouvem-se os primeiros cliques, sinal de que o repórter fotográfico já começou a trabalhar. O gravador está ligado em cima do tabliê e vamos conversando no modo informal e descontraído, normal entre duas pessoas que são amigas há mais de uma década.
“O Seixal era a escolha óbvia para esta reportagem. Vivi lá 20 e tal anos. Foi lá que fiz o meu liceu, que foi dos tempos mais felizes da minha vida. Foi lá que comecei na rádio e televisão escolar, com o Rui Unas. Depois foi lá que comecei a fazer rádio local, na rádio Seixal. E ainda porque foi lá que comecei a trabalhar na Sigma 3, para o Alta Voltagem e para o Curto Circuito. E, já agora, foi lá que comecei a tocar, num bar do Seixal que já não existe e que era giríssimo, todo em vidro, no meio da baía”, enumera. Bem vistas as coisas, não havia escolha melhor.

Sigamos então, num dia de primavera a cheirar a verão, para o Seixal, esse albergue de talento, de onde partiram várias figuras dos media e do espectáculo. “A Escola Secundária do Fogueteiro, para onde vamos, e que agora se chama Secundária Manuel Cargaleiro, inaugurada em 1985, juntou, em gerações diferentes porque temos idades diferentes, o Rui Unas, os irmãos Rosado, o Nélson e o Sérgio dos Anjos, o Pedro Teixeira, o Jorge Picoto, Os Alcoolémia, a Cláudia Mergulhão, uma manequim fantástica, que foi uma das musas do estilista José Carlos”, vai enumerando Rita, enquanto, já do lado de lá do Tejo, nos vai guiando por dentro do Fogueteiro. “Agora naquela rotunda viras à direita”. O carro vai seguindo em marcha urbana. “Ali à esquerda, há uma fábrica que vende as melhores bolas de Berlim de sempre. Do mundo inteiro. Sempre que aqui venho, e quando posso, como uma. Não é nada de cremes de pasteleiro, sabe mesmo a ovo”, elogia. “À volta, passamos por lá”. Fica a promessa.

De repente, Rita Marrafa de Carvalho ainda se lembra de mais um VIP, anónimo nos tempos da escola: “Ah, quem andava na escola também era o Diogo Morgado, com quem eu partilhava o autocarro. Mas eu saía nas Paivas e ele seguia para Cruz de Pau”. O condutor-jornalista não resiste à piada. “O quê? O Jesus Cristo ficava na Cruz de Pau?”. Marrafa dá uma gargalhada sonora, como se nunca lhe tivesse ocorrido a graçola. “Não é maravilhoso?”, pergunta.

A escola dos afetos
Chegámos. Mas não chegámos sozinhos. No exato momento em que estacionamos o carro no parque, um outro se junta à direita. Rita acena, enquanto fecha a janela. “É o professor Pires”. A porta do carro abre-se, mas a jornalista ainda solta um grito. “Espera, tenho de colocar um pouco de bâton”. Seja. Finalmente pronta, sai e cumprimenta o professor com dois beijinhos.

“Temos ainda uma grande ligação com os professores da altura”, justifica Marrafa. “Esta era uma escola dos afetos, uma escola cultural que tinha clubes dinamizados pelos professores. Clube da Literatura, Clube da Música, Clube do Ar Livre, Clube do Teatro. E nós tínhamos sempre muitas atividades”, recorda.
Manuel Pires vai abrindo caminho na visita guiada. Estuga o passo e complementa: “E ainda somos assim. Esta é uma escola muito ativa”. As paredes, cheias de trabalhos dos alunos, alguns bem artísticos, inspirados no génio que dá nome à escola, não permitem desmentir o professor.

“Há um estigma muito tonto em relação à Margem Sul”, diz Rita Marrafa de Carvalho. “Esta escola era absolutamente multicultural. Tínhamos os ‘betos’ todos da Verdizela e Belverde, como tínhamos a malta mais heavy e rock, como eram os Alcoolémia, como tínhamos os miúdos que viviam perto do bairro da Jamaica. Era, e presumo que ainda seja, multicultural, estávamos completamente enraizados. Uma escola transversal em termos sócio-económicos”.

E Rita, onde se integrava ela? A pergunta solta a gargalhada sonora que se lhe reconhece. “Como era uma escola muito vocacionada para as artes, vinha muita gente dos arredores ali para o Fogueteiro. O ambiente era muito bom. Onde é que eu me integrava?”, pergunta, para responder, de seguida: “Como era uma tipa profundamente irritante, porque era muito expansiva e proactiva, e a minha turma era de gente muito atinadinha, eu dava-me mais com os ‘betos’. Eu era um bocado ‘beta’, ainda hoje me dizem que sou um bocadinho (risos). Depois tive um bocado aquela onda beta-hippy e usava uns brincos com pena de pavão, uma cruz da paz e cantava Doors”. Depois, diz, normalizou.

Rita vai parando durante a visita. Já ali voltara desde que abandonara a escola, portanto, nada lhe cheirava a surpresa. “Não volto recorrentemente, mas de vez em quando, sim, até porque já fizemos, entretanto, aqui umas festas”, esclarece. Mas hoje, perto de fazer 40 anos (“não sei se rie, se chore…”), e mãe de dois filhos (a já citada Mariana, 11 anos, que vai segurando na mala da mãe, a cada foto que é tirada, e Miguel, de cinco), Rita olha para as paredes azuis e brancas da escola com uma certa saudade. “Fui muito feliz aqui. Nós éramos uns privilegiados. Toda a gente acha que a Margem Sul é um subúrbio manhoso, mas não é verdade. Eu nunca fui assaltada, nunca me envolvi em qualquer arruaça, andei sempre em transportes públicos até muito tarde. Apanhava o último barco e saía em Cacilhas. E nunca me aconteceu nada. Essa história da Margem Sul é um mito urbano”.

Faz uma pausa. “Pronto, está bem, se fores falar para zonas como a Quinta da Princesa, para o Feijó, equaciono essa possibilidade de ser um sítio um bocadinho diferente, mas esta zona onde cresci, não”, relata a jornalista, filha de uma professora e de um engenheiro “que teve sempre cargos de direção”. “Uma classe média que vivia bem”, resume, acrescentando que viveu numa casa “onde sempre houve livros, onde houve sempre música e instrumentos”. “Em termos culturais nunca me faltou nada. Os meus pais tocavam vários instrumentos, viajávamos, líamos muitos. O meu pai pintava e ainda hoje pinta, talvez não tanto quanto gostaria. A minha mãe é uma leitora compulsiva. O meu avô era maestro e compositor. O meu tio tocava e ainda toca na banda da Carris. Portanto, tinha ali um ninho muito confortável”, recorda.

“Não era uma aluna marrona”
Do 7º ao 12º ano, antes de entrar na Universidade Nova para tirar Ciências da Comunicação, aquela escola foi dela. “Era boa aluna. Não era daquele tipo marrona, mas estudava. A minha mãe sempre me ensinou que a melhor forma de estudar era escrevendo. E, portanto, eu estudava, escrevia a matéria, lia-a para um gravador de cassetes e, às vezes, adormecia a ouvir a minha voz a debitar matéria. Mas aquilo funcionava”, diz com uma voz segura.

A Educação Física era uma exceção. “Não era particularmente boa”, diz, eufemisticamente, numa confissão quase cúmplice. “Tirava um 3 e ficava feliz; também não me esforçava assim muito. Os 3 a Educação Física talvez tenham sido os únicos que tirei. Era uma aluna de muitos 5, mas os meus pais eram muito irritantes (gargalhada). Eu chegava a casa, cheia de orgulho, com um 5 para lhes mostrar e eles respondiam-me: ‘muito bem, não fizeste mais do que a tua obrigação’”.
Mariana segue na peugada da mãe. Ouve atentamente as suas histórias, se bem que “muitas delas já conheça de cor e salteado”. Também ela é boa aluna. Quando entra na sala 83, num dos seis pavilhões que compõem a secundária Manuel Cargaleiro, a filha mais velha de Rita corre para o quadro branco. “Isto agora é tudo moderno. Onde é que está a ardósia? E o giz?”, pergunta Rita, na brincadeira.

As mesas estão dispostas normalmente, como em todas as salas de aula. Pedimos a Rita que se sente no “seu” lugar. “Não consigo”, responde. Naquele tempo, “a disposição da sala era outra. Era em U, todos se viam, e os professores percorriam a sala toda”. Ainda assim, puxa uma cadeira, despe o casaco e senta-se, como aluna aplicada. Deixa-se fotografar.
A visita segue completa. “Aqui é a sala dos professores”, anuncia Manuel Pires. Rita complementa: “Olha só para a categoria do bar! Aqui nunca podíamos entrar, era sagrado”. Mais dois passos. “Olha, ali era a secretaria. Isto está igualzinho, que giro. Eu, esta parte não tinha voltado a ver”.

O passado é uma coisa bem arrumada na vida de Rita Marrafa de Carvalho. Literalmente. “Tenho todo o meu percurso escolar guardado. Cadernos de apontamentos, livros, dossiers, tudo por anos”, diz, com o ar mais normal do mundo. Perante o espanto do repórter, Rita volta à carga. “Acho que é normal, não é? Então, ia deitar fora? Está tudo arrumado em casa da minha mãe”. Mariana ri-se: “Ainda me vão fazer falta. Vais ter de me empresar os apontamentos”, diz. A mãe responde-lhe: “Claro, meu amor, devem estar muito atualizados”.

Os anos passaram. Rita volta a falar dos 40 a que vai chegar em breve. “Vou fazer uma festona. Ainda por cima porque são 20 de RTP”, conta a jornalista, que entrou na então 5 de Outubro como… locutora de continuidade. “Eu tinha 19 anos, ia fazer 20 em breve. Não comecei na informação, porque estava na faculdade. Como já trabalhava na produtora do Unas, fui fazer continuidade. Só podia aos sábados e domingos, porque tinha aulas. Aquilo era feito em direto, naquele tempo. Eu tinha de estar pronta para entrar no ar às oito da manhã, dentro da cabina de som da régie, para dar toda a programação do canal 1”, conta. Faz uma pausa de dois segundos, coloca a voz e exemplifica: “Muito bom dia, damos então início à emissão de hoje da RTP1, dia 13 de abril de 2017. Começamos, como é habitual, com o espaço infanto-juvenil, com o episódio do Batman. Depois à uma da tarde, não perca toda a atualidade com o Jornal da Tarde”. Mariana ri-se. “Nunca te enganavas?”, pergunta. “Sim, disse muitos disparates, em direto, claro, mas faz parte. Eram oito da manhã”. Ainda conciliou a faculdade, a locução na RTP e a apresentação do Curto Circuito no extinto CNL. “Era uma loucura. Até porque houve uma altura, curta, que ainda estava com isso tudo e na rádio Seixal, mas tive de optar”.

A informação viria mais tarde. Primeiro, quando acabou o curso, num estágio curricular na RTP: “Estagiei os três meses no Regiões, que é hoje o Portugal em Direto”. Foi uma escola, não tem dúvidas. “Fiz de tudo, vi de tudo. Aprendi imenso com aquela equipa, aprendi muito da importância dos meios de comunicação regionais, como são verdadeiras pérolas e fontes de informação para pequenas e grandes histórias”, diz. O estágio chegou ao fim e Rita não ficou. Voltou para o CNL durante um ano, a fazer o Curto Circuito, mas “já estava farta do entretenimento”. O telefone tocou por essa altura. “Eram o José Rodrigues dos Santos e o Carlos Fino, que estavam na direção, a dizer que tinham visto reportagens dos últimos estagiários, que tinham gostado muito das minhas e se eu estava disponível”.

Caiu como sopa no mel. Fez um estágio profissional. “E fui ficando, fui ficando, fui ficando. E lá estou, muito feliz, sempre com desafios novos”. Na televisão pública já fez de tudo: grandes operações no terreno, coordenação, apresentação, enviada-especial. “Eu não sou muito de escolher o momento alto da minha carreira. Não creio que haja isso. As carreiras fazem-se todos os dias, com trabalho, com esforço, com dedicação, mas é evidente que a reportagem que fiz no sudoeste asiático, depois do tsunami de 2004 na Indonésia, que matou 200 mil pessoas, foi muito impactante a vários níveis. Foi um trabalho que me marcou muito, é evidente”.

Estamos na baía do Seixal. Ali, Rita começou a tocar, ali Rita passeava com os colegas e amigos. E é ali que Rita posa de novo para a fotografia. Com Lisboa à vista, Rita olha o horizonte. E garante que “o melhor está sempre para vir”.
De regresso a casa, a jornalista da RTP fala da música e de como as cantigas a preenchem. “Quero continuar a fazer o que gosto: a contar boas histórias, a cantar, a escrever livros, a dar aulas. Sou uma privilegiada por fazer o que gosto. E ao longo da minha vou tentar não me esquecer disto, não me esquecer de continuar a fazer o que me dá prazer”.
Pena é que, já em Lisboa, nos tenhamos lembrado de um esquecimento fatal: as Bolas de Berlim, as tais “melhores do mundo”, ficarão para outro dia…

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.