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Rui Patrício: “Não houve reações ao que Moro disse. Isso preocupa-me”

O advogado, presença assídua em alguns dos casos mais mediáticos, diz que não há classes profissionais “inocentes” na violação do segredo de justiça.
19 Maio 2019, 14h00

Com base na vasta experiência profissional, Rui Patrício lançou recentemente na Almedina “A Presunção da Inocência no Julgamento em Processo Penal — Alguns Problemas”. Nesta entrevista ao Jornal Económico, o advogado fala sobre a mediatização da Justiça,  a violação do segredo de Justiça e os casos que mais o marcaram ao longo da carreira.

Como nasceu a ideia para escrever o livro “A Presunção da Inocência no Julgamento em Processo Penal”?

Eu escrevi este livro nos anos 90, no mestrado, e a ideia surgiu porque achava que a presunção de inocência era importante e que podia ter algumas ameaças no modo como o processo penal estava estruturado. Depois, adaptei o trabalho académico para o concurso de assistente à faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde fui professor durante muitos anos. O livro teve várias edições, estava esgotado e, no final do ano passado, achei que devia reeditá-lo.

A presunção de inocência está hoje tão mal tratada como há 20 anos?

Do ponto de vista processual, as coisas mantêm-se mais ou menos na mesma, quer dizer a presunção de inocência em geral é bem tratada nos processos. No modo como o julgamento está organizado pode haver algumas melhorias. E são essas melhorias do ponto de vista jurídico e científico que eu aponto no livro. A arquitetura do nosso processo ainda é a mesma do código de 1987 e, portanto, as coisas do ponto de vista da presunção de inocência não melhoraram nem pioraram numa visão estritamente processual. Agora numa visão externa, no modo como os processos são tratados, acho que pioraram muitíssimo. Há 20 anos não havia este fenómeno da mediatização e, portanto, não havia uma presunção de culpa generalizada. Culpa pública, como hoje existe, relativamente a algumas pessoas em alguns processos. Isso é absolutamente evidente.

Esta mediatização de que fala pode influenciar as sentenças?

O verbo é pode. Eu não sei se influencia, mas teoricamente acho que pode. Um dos capítulos deste livro, que eu chamo a pré-compreensão na decisão judicial, mostra como quem julga ou decide é influenciado por tudo o que se passa à sua volta. Tenho visto ao longo dos meus 25 anos de advogado que os juízes são resistentes, treinados, profissionais e fortes para resistir ao ambiente que está à sua volta. Mas são humanos como qualquer um de nós. E a pergunta que nós devemos fazer é se o ambiente que se gera relativamente a certos processos, muitas vezes desde fases muito iniciais, se pode ou não ter influência. Eu não sei se tem. Mas teoricamente pode ter. Já notei alguma influência do ambiente público nas decisões tomadas dentro dos Tribunais. Só não me peça para dar exemplos.

Mas podemos apontar culpados?

A mediatização é inevitável. Nós não nos devemos insurgir-nos contra a mediatização. Faz parte da sociedade moderna, tem muitas vantagens, a liberdade de imprensa, o escrutínio e o modo como todas estas coisas são tratadas são importantes. E também fundadores da sociedade democrática e do estado de Direito, tal como a presunção da inocência e outros princípios. Portanto, o problema não é a mediatização. O problema é como é que essa mediatização é feita. Por um lado, como é que alguns órgãos de comunicação social tratam os processos e os envolvidos. Por outro lado, como é que todos nós, consumidores de notícias, interpretamos aquilo que nos chega. Nós não podemos misturar um forte escrutínio, uma forte carga noticiosa, que é inevitável, com uma presunção de culpa generalizada. A culpa é um pouco de todos nós porque não fazemos o esforço suficiente para cumprir o mandamento da presunção de inocência. Há responsabilidades acrescidas. Os meios de comunicação social porque devem dar as notícias de uma forma equilibrada e as pessoas que intervêem nos processos, os juízes, os procuradores, os advogados, os responsáveis das várias classes têm de fazer esta pedagogia. E os responsáveis de certas instituições ou mesmo responsáveis políticos têm de ter cuidado com algumas coisas que dizem.

Dê-me um exemplo concreto.

Posso dar-lhe o episódio, que aconteceu recentemente em Portugal. As declarações do ministro Sérgio Moro sobre a ‘Operação Marquês’. Do meu ponto de vista, são muito criticáveis. E ainda mais criticável é a falta de reação. O que mostra, entre outras coisas, que a presunção de inocência no espaço público anda pelas ruas da amargura. Nós tivemos um ministro de um estado estrangeiro que proferiu determinadas declarações, que eu considero muitíssimo criticáveis e não vi nenhuma reação forte pública de nenhum responsável contra essas declarações. Isso, a mim, preocupa-me. Mais do que as declarações em si, a falta de reação preocupa-me.

Uma das declarações de Sérgio Moro dirigiu-se a José Sócrates: “Não debato com criminosos pela televisão”

Independentemente da pessoa contra quem essas declarações tenham sido proferidas e, a mim, pessoalmente, é-me indiferente se é A, B, C ou D, a verdade é que as declarações do senhor ministro puseram fortemente em causa, além de outros princípios, o princípio da presunção de inocência. Isso é sintoma de que há uma presunção generalizada de culpa e ninguém se importa com isso. Além de que essas declarações, como aliás outras que eu tenho visto recentemente, podem querer significar uma pressão sobre o processo, e isso também é muito negativo.

Existe alguma solução para todos estes protagonistas?

Existe. Advogado, juiz, magistrado do MP, jornalista, dono de órgão de comunicação social, opinador, deve alertar para a importância da presunção de inocência. O processo penal não serve para punir culpados. O processo penal serve para decidir se existem ou não culpados, que é uma coisa muito diferente. Portanto, a responsabilidade é de todos e de cada um.

O Ministério Público tem uma responsabilidade acrescida na violação do segredo de justiça?

Considero que, do ponto de vista da violação do segredo de Justiça, não há nenhuma classe inocente. Isto é, considero que podemos encontrar culpados em todas as classes profissionais que lidam com os processos – magistrados, procuradores, advogados, polícias, funcionários, etc, etc, etc. Não é a mim que cabe a responsabilidade de investigar a violação do segredo de Justiça. Não acho que haja nenhuma classe inocente. Agora, relativamente ao MP há uma responsabilidade acrescida. Quando eu digo isto, não estou a presumir que o MP viole mais do que outras classes. Estou a dizer é que quem tem a guarda do processo durante o inquérito é o MP na maior parte dos casos, excepto quando vai ao juiz de instrução. Mas isso acontece em aspetos pontuais do processo. Na maioria, no lapso temporal do inquérito, quem tem a guarda do processo é o MP. Isto é, se alguém vai ao processo e viola o segredo então há uma responsabilidade acrescida de quem tinha de o guardar e não o guardou. Desse ponto de vista, não do ponto de vista da violação estrita, mas da guarda do processo, eu acho que tem uma responsabilidade acrescida.

 Quais as medidas que teriam de ser tomadas para melhorar a Justiça em Portugal?

A Justiça melhorou muitíssimo em muitas áreas, o que não significa que esteja tudo bem. Em primeiro lugar, tínhamos que mexer em algumas áreas onde ainda há excessiva lentidão, como os tribunais administrativos e fiscais, algumas áreas civis, algumas áreas dos tribunais de comércio, alguns aspetos onde os processos ainda demoraram muitíssimo. Outro ponto para o qual deveríamos olhar é o das custas processuais, que é uma matéria que nos últimos anos sofreu algumas mexidas, nem todas felizes, e que hoje frustra um pouco o acesso das classes menos desfavorecidas à Justiça. Outro ponto onde nós talvez devêssemos mexer era o ponto do próprio discurso sobre a Justiça. Isto é, o modo como se comunica e se pensa a Justiça no espaço público e o modo como os atores do judiciário lidam com esta questão. Onde eu acho que se tem melhorado bastante nos últimos anos, mas tem que se continuar a melhorar, é no diálogo entre as profissões da Justiça. Há mais um ponto que eu gostava de acrescentar e é um desafio que eu faço ao legislador: era muito bom que não se legislasse tanto em Portugal. Às vezes, legisla-se muito depressa, a reboque de situações concretas. Era bom que se pensasse um bocadinho melhor e se deixasse as leis e os códigos fazerem o seu tempo. Isto também ajudava.

Trabalhou no proceso de extradição de Abu Salem para a Índia. Para se ser um bom advogado é preciso ter coragem?

Há quatro coisas que fazem um advogado: trabalho, porque um advogado tem de trabalhar; coragem, ninguém é advogado se não tiver coragem, sobretudo se trabalhar em diversas áreas; criatividade, é muito importante um advogado ser criativo; combativo, tem de saber lutar por aquilo em que acredita em cada caso, com equilíbrio, dentro dos limites da lei e da sua consciência. Estas quatro coisas são absolutamente essenciais para ser advogado, não é para ser bom advogado.

Nunca ninguém comentou consigo “não sei como é que não tem medo”?

Em geral, digo-lhe que, ao longo da minha vida profissional já várias pessoas comentaram comigo o que acabou de perguntar: ‘como é que não tens medo de trabalhar neste caso ou noutro’. Ao longo da minha vida profissional, já fui ameaçado, direta ou indiretamente. Já fui pressionado, direta ou indiretamente. Não lhe vou dizer em que casos, mas digo-lhe que sim e que cá continuo.

Também pertence à equipa de advogados que está a assessorar o Benfica no caso ‘E-Toupeira’. O futebol é um setor onde há uma suspeição enorme todos os dias…

É uma das áreas onde há mais ruído público desse ponto de vista. Mas não é o único, porque a política também é. Certos setores da atividade empresarial e económica também são.

Quais foram os casos que mais o marcaram em 25 anos de carreira?

Dos casos mediáticos, eu diria que todos os casos marcam um advogado. Mas Entre-os-Rios foi um caso que me marcou muito, por certas razões. A ‘Face Oculta’, por outras razões. O caso da extradição de Abu Salem, também me marcou muitíssimo.

O caso do Engenheiro Manuel Vicente também foi desafiante? Estavam em causa as relações diplomáticas entre Portugal e Angola…

Foi muito desafiante, e juridicamente muito interessante. Se calhar, alguns desconhecidos até me marcaram mais do que os conhecidos, pelas mais diversas razões. Mas esse foi um caso desafiante e juridicamente bastante interessante.

Quais são os casos em que não gosta de trabalhar?

Não gosto de trabalhar em casos que tenham que ver com droga, por razões várias. Não gosto de trabalhar com casos que tenham que ver com crimes sexuais. Fora isso, depende muito dos casos, do que o cliente me diz, como eu encaro o caso, e do que a minha consciência me dita. Dizer que não é um privilégio para um advogado e, infelizmente, nem todos os colegas estão na posição privilegiada que eu estou.

É mais difícil alguém assumir a culpa num crime de sangue ou num crime económico-financeiro?

Acho que não há regras para isso. A minha experiência diz-me que cada caso é um caso. As pessoas lidam de forma muito diferente com os seus próprios casos. Não lhe consigo dizer se é mais difícil um ou outro porque depende das circunstâncias. O que é absolutamente fascinante e desafiador na advocacia, sobretudo na de Tribunal, é a singularidade de cada caso e a singularidade de cada cliente.

A decisão do sistema judicial é sempre justa?

A decisão do sistema judicial é, do ponto de vista da sua legitimidade, justa. Se ela está certa ou errada, do ponto de vista da sua materialidade é outra questão. Se o processo seguir as regras e for legitimado pelo procedimento, evidentemente que a decisão é justa, desse ponto de vista, e o sistema está montado para isso. E também há mecanismos de revisão de sentença, caso se venha a apurar um erro judiciário.

Artigo publicado na edição nº 1987 de 3 de maio, do Jornal Económico

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