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“Se non è vero, è ben trovato!”

O processo de radicalização, não é apenas uma consequência da crise ou do “espírito do tempo” ou do estado de “estupidificação” cultural de uma sociedade, é antes, condição necessária para que as elites justifiquem o seu exercício do poder, a perda de direitos individuais e aumento do controlo e vigilância sobre as populações.
23 Setembro 2020, 07h15

A aculturação do ódio e dos extremismos no seio das sociedades contemporâneas é uma consequência de outro processo de aculturação, do medo. Determinante no projeto político de uma elite afastada do poder, o medo faz uso de uma estratégia de dominação assente numa confrontação constante e na radicalização de posições contrárias. O medo e o ódio satisfazem as necessidades de quem exerce o poder e por isso, querem assegurar a manutenção da sua hegemonia. O medo e o ódio congregam também, todos aqueles que tendo sido afastados do poder, por ele ambicionam.

O processo de radicalização, não é apenas uma consequência da crise ou do “espírito do tempo” ou do estado de “estupidificação” cultural de uma sociedade, é antes, condição necessária para que as elites justifiquem o seu exercício do poder, a perda de direitos individuais e aumento do controlo e vigilância sobre as populações.

O medo é um hábil instrumento político, porque através dele, se acusam inocentes, alegados “culpados disto tudo”. E ao longo da história, os culpados foram sempre “os outros” – todos aqueles que distavam das ideias e preconceitos de uma maioria: aqueles que vinham de fora, os estrangeiros, as minorias étnicas e sociais, os mais pobres e desfavorecidos, aqueles que discordavam de uma determinada “maioria silenciosa” e procediam de modo diferente do que era socialmente aceite.

No caso português, os herdeiros de uma alegada “maioria silenciosa”, afastados do poder desde 1974, sempre recusaram aceitar a diferença, porque, sempre quiseram impingir ao sistema educativo e aos programas curriculares, os autores de referência do Estado Novo e a perpetuação dos mitos de uma determinada nacionalidade racial e moral civilizadora, justificativa do colonialismo e da escravatura. A censura moral sempre foi, sob o pretexto de um falso pudor, um meio para a instauração de um projeto de dominação social e política por uma elite.

Àquilo que a escola não deu lugar, a comunicação social e o comentário futebolístico deu o púlpito e o auditório. As ideias totalitárias no século XXI, fazem uso dos novos palcos discursivos mediáticos e disseminam-se nas redes sociais, como um vírus que se apresenta como “solução final” para todos os “males” deste mundo. Talvez a atual crise pandémica tenha acentuado o esquecimento da História: depois da gripe espanhola, apareceram os fascismos! Estes, “não caíram do céu aos trambolhões” foram resultado da crise das democracias liberais (Rosas, 2019). E a censura moral é, pois, a melhor forma de uma elite fazer germinar novas ideias fascizantes, para que não se ouse questionar os reais problemas no seio da sociedade.

A personagem o “parvo” do «Auto da barca do inferno» de Gil Vicente, se por um lado carateriza uma sociedade revestida de uma ingenuidade, por outro lado, demonstra a sabedoria dos alegados loucos (Gonçalves, 2010). Excêntricos ou revolucionários tornam-se perigosos para as elites que detêm o poder, portanto, a nominação de “loucos”, visa tão somente, excluir todos os indesejados à manutenção da hegemonia vigente. Descredibilizar os críticos de um sistema de dominação e ordenação social é mais confortável para uma elite do que aceitar questionar a ordem moral e social aceite. A narrativa da loucura – digo, da crítica –  na trilogia da barca em Gil Vicente, como na obra «Elogio à Loucura» de Erasmo de Roterdão, opera um julgamento moral das personagens, caraterizando culturalmente a sociedade da época. «A loucura, como sabedoria, também se revela quando apresenta um profundo conhecimento, perceção e crítica da realidade» (Gonçalves, 2010).

Max Weber no seu livro «A ética protestante e o espírito do capitalismo» elabora a crítica ao decadentismo social e identitário, originado pelo materialismo e pelo capitalismo neoliberal das sociedades ocidentais – nomeadamente, as germânicas e anglo-saxónicas – cujas culturas patrocinaram uma ética justificativa de uma moral superior das elites e o dever civilizacional destas (Weber, 2015).

A ética de uma elite capitalista, premiadora do sucesso, descomprometida socialmente, é a principal promotora do falso discurso da meritocracia, justificativa de uma moralização social. Fazendo uso de instrumentos censórios, como ferramentas de dominação das classes desprivilegiadas e das minorias, o mito de uma superioridade moral, é, portanto, uma premissa intencional de uma elite.

A mitificação contemporânea da moral tornou-se global e instrumentalizada pelos populismos demagógicos, que também contribuíram para a massificação cultural e para a génese de um «capitalismo da sedução» (Lipovetsky, 2019).

Como refere o Professor Doutor José Cristián Góes, num recente artigo a propósito da realidade brasileira, este demonstra que o projeto político de uma elite é um processo pedagógico violento: «educar a odiar os outros» (Goés, 2020) para melhor controlá-los. Colocar a classe média contra os mais pobres e desfavorecidos, tem por objetivo justificar a perda de liberdades individuais, alimentando a conflitualidade entre classes e uma «falsa disputa identitária», refere. A «manutenção de uma guerra permanente» e a «indiferença ativa e cúmplice» são instrumentos de um «projeto político-identitário» – de dominação autoritária e absoluta – que «reafirma a violência, o autoritarismo, o racismo» sob capa de um «falso moralismo» (Goés, 2020).

A censura moral à arte, à educação, ao pensamento científico ou aos conteúdos programáticos lecionados, são uma tentativa justificativa do insucesso das políticas económicas, sociais e educativas que as elites patrocinaram e têm vindo a implementar desde há várias décadas.

A censura às expressões estéticas e artísticas, como temos vindo a assistir na contemporaneidade, proliferam nos regimes dos novos totalitarismos populistas. No Brasil, a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou (em primeira ronda de votações) um projeto legislativo que proíbe as expressões artísticas e culturais com nudez ou que «atentem contra símbolos religiosos» nos espaços culturais e museológicos do distrito. Além de subverter a função e espírito crítico da arte, a censura constitui um instrumento político para entronização das elites e para que estas continuem a influenciar ou exercer poderes ocultos.

Os novos moralismos servem de pretexto para a assunção de novas políticas de controlo social e estético, sob o falso pretexto da implementação de uma determinada conceção de «pudor público» e correção moral, de uma sociedade global, cada vez mais degenerada.

Uma elite promotora de uma censura moral, sendo letrada, revela-se maquiavélica, porque, ocultando o que a sua real vontade ambiciona, ignora intencionalmente a história da arte, sob o pretexto de um falso pudor e de uma moral, que nunca teve de facto. Porventura, outra dita elite, desprovida de literacia cultural, desconhecerá o «êxtase místico» de Santa Teresa de Ávila (c. 1647-52) ou o «êxtase» da Beata Ludovica Albertoni (c.1671–74), mármores de Bernini. Os membros desta elite, desconhecem certamente as «odaliscas» de Ingre (1814) e de Eugène Delacroix (1857) ou «L’origine du monde» (1866) de Gustave Courbet. E com esta censura, ficamos próximos, tão perigosamente, das fogueiras hitlerianas de 1933. Fogueiras de obras de arte e de livros da autoria de Albert Einstein, Sigmund Freud, Jack London, Ernest Hemingway e Sinclair Lewis, entre tantos outros que terão sido queimados (Baéz, 2004).

Porque não há «filhos de um Deus menor» (1986) – título de filme de Randa Haines –  todos temos o direito de sermos diferentes dos nossos pais e mais diferentes, ainda, dos nossos antepassados. Devemos, contudo, ter a coragem de sermos melhores que estes.

Impossibilitar o direito ao livre acesso a uma educação promotora de valores de tolerância e de respeito pela diferença é, pois, um perigoso exercício para semear o ódio, junto daqueles que serão os futuros protagonistas e construtores de uma sociedade.

Sim, é dever de um Estado garantir o respeito pela diferença e por isso, deverá defender um modelo de desenvolvimento humano, promotor da tolerância e que não aceite o pudor de uma elite, nem os argumentos de falsos purismos, como pretexto para um novo uso da censura. A nova censura moral, sobre o conhecimento, sobre os relacionamentos humanos ou sobre a arte, apresenta-se disfarçada nas agendas mediáticas de grandes grupos económicos, podendo constituir um perigoso instrumento de controlo ideológico, determinante para a implementação de um plano de controlo social, a longo prazo.

Ora, o «bom combate» realiza-se no coração de cada um. Não tenhamos medo! Tenhamos a coragem de amar radicalmente, desesperadamente, o outro ser humano, tal como ele é. Amá-lo, não na sua semelhança connosco, mas na sua diferença. Todos temos de ganhar coragem e recusar o medo que nos querem impingir. Difícil ou utópico? Talvez, mas este projeto de utopia – o Amor – é aquele pelo qual todos devemos acreditar e lutar. A lógica do amor e do perdão – por oposição ao ódio e à violência – é contrária à lógica deste nosso mundo contemporâneo, tal como o conhecemos.

A lógica do Amor é contrária à lógica económica neoliberal de especulação financeira, é contrária ao hiperconsumismo, é contrária às estratégias de dominação política instigadoras do medo, da violência e do ódio. A lógica do amor é a antítese da perda das liberdades individuais. Esta lógica trazida para o seio da nossa sociedade seria a consumação da consciência da necessidade de fortalecimento do estado social, mais justo, mais inclusivo e mais solidário. Um estado social assente nos valores democráticos.

Ora, a crise de valores e princípios, mais não é do que um intencional equívoco gerado por uma elite, para justificar o seu insucesso. As crises de valores éticos e morais, além de cíclicas ao longo da história, possibilitam mensurarmos a qualidade das transformações sociais e económicas que aconteceram em cada momento da história e que levaram à queda de impérios.

A crise contemporânea é consequência da decadência das políticas neoliberais, do consumismo exacerbado e das estratégias de sedução mediática e de alienação coletiva de uma sociedade cada vez mais acrítica e despolitizada. A cultura do entretenimento (Debord, 2003; Lipovetsky, 2019) instituiu a não pertença identitária e substituiu o lugar cívico de participação política, pelo lugar de distração e lazer hedonista, contribuindo para a «estupidificação coletiva» de uma sociedade global hipermediatizadora (Lipovetsky, 2019). Entreter para estupidificar, estupidificar para doutrinar, para assim melhor controlar. Parafraseando Heinrich Hein, numa sociedade «onde se queimam livros, acabam queimando homens» (Baéz, 2004). Acredito que a melhor forma de combater os medos e os ódios é com mais e melhor Educação: promotora de uma cultura de amor.

As «imagens-entretenimento» do passado (Debord, 2003; Lipovetsky, 2019), persistem até aos nossos dias, revestidas sob a capa de versões “atualizadas”, como se fosse possível a existência de «fascismos light» ou «low profile» ou a coabitação com as sociais-democracias progressistas (Goes, 2020a). As versões «light» e «low profile» da imagem política e da prática discursiva, nas novas ditaduras do entretenimento, têm como objetivo perpetuar as lideranças em cadência e assegurar a manutenção da hegemonia do poder (Goes, 2020b). «Se non è vero, è ben trovato!»

Referências:

Baéz, F. (2004). História universal da destruição de livros. Rio de Janeiro: Ediouroi.

Debord, G. (2003). A sociedade do espetáculo. Projeto Periferia. http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf

Goes, D. (2020ª, agosto 17). A fenomenologia dos populismos totalitários do século XXI e o discurso da crise das democracias liberais. A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Funchal: Ponte Editora. https://apatria.org/politica/a-fenomenologia-dos-populismos-totalitarios-do-seculo-xxi-e-o-discurso-da-crise-das-democracias-liberais/

Goes, D. (2020b, agosto 12). “Ceci n’est pas”… Democracia: é um simulacro. Jornal Económico. https://jornaleconomico.pt/noticias/ceci-nest-pas-democracia-e-um-simulacro-623056

Goés, J. C. (2020, agosto 20). A colonialidade fascistoide. A Pátria – Jornal da Comunidade Científica de Língua Portuguesa. Funchal: Ponte Editora. https://apatria.org/sociedade/a-colonialidade-fascistoide/

Gonçalves, T. (2010). A representação do louco e da loucura nas imagens de quatro fotógrafos brasileiros do século XX: Alice Brill, Leonid Streliaev, Cláudio Edinger, Claudia Martins. Campinas: Universidsade Estadual de Campinas.

Lipovetsky, G. (2019). Agradar e tocar: Ensaio sobre a sociedade da sedução. Lisboa: Edições 70.

Rosas, F. (2019). Salazar e os Fascismos. Lisboa: Tinta da China Edições.

Weber, M. (2015). A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa: Editorial Presença.

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