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Somos mais ricos do que pensamos?

A estagnação de rendimentos da classe média provoca um aceso debate político nos EUA. Mas, quando os números parecem demasiado estranhos, não devemos ter medo de fazer a pergunta: estarão as estatísticas erradas?
2 Junho 2017, 13h03

Quem segue com alguma atenção o debate político americano já terá ouvido falar da enorme estagnação de rendimentos da maioria da classe operária. A afirmação assume várias formas e justifica-se com vários números, como a ideia de que “o trabalhador mediano não teve qualquer ganho salarial real desde os anos 80” (Joseph Stiglitz), que “os Millennials são a primeira geração a ganhar menos do que os seus pais” (Forbes) ou que “a produtividade aumenta, mas as remunerações não descolam” (New York Times).

Seja qual for a formulação concreta, as críticas não são descabidas. Apesar de o Produto Interno Bruto ter crescido a um ritmo apreciável desde os anos 80 (cerca de 3%, em média), quase todas as estatísticas disponíveis – como a que aparece no quadro à direita – sugerem que os frutos do crescimento têm sido distribuídos de forma desigual. O poder de compra adicional produzido pela economia tem desaguado sobretudo nos resultados das grandes empresas e nas folhas salariais de uma elite restrita. Para quem está na ‘metade de baixo’ da distribuição de rendimentos sobraram apenas algumas migalhas.

Inflação sobreavaliada
A estagnação de rendimentos da classe média tem sido uma das principais explicações avançadas por politólogos e analistas para explicar alguns dos fenómenos mais notáveis do panorama político americano, como a cisão cada vez maior entre democratas e republicanos e, claro, o inesperado resultado das recentes eleições. Mas, como em tudo na economia, quando os números parecem demasiado estranhos não devemos ter medo de fazer a pergunta: será que não são as estatísticas que estão erradas?

Os dados sobre salários não levantam muitas dúvidas. Há imensas fontes diferentes, e todas contam mais ou menos a mesma história. Mas para avaliar o poder de compra dos salários ao longo do tempo, tal como é feito no quadro ao lado, também é preciso olhar para o sobe e desce do nível de preços, porque os bens e serviços não custam sempre o mesmo. Por outras palavras, temos de saber a inflação. E é aqui que as coisas ficam complicadas.

Suponha o leitor que quer calcular a inflação. O senso comum sugere que basta olhar para o preço de cabaz de bens, manter os olhos abertos enquanto os preços sobem, comparar os dois valores e calcular a diferença. O que poderia ser mais simples?
Na verdade, só é simples se supuser que ao longo deste período não há novos bens a entrar no mercado (o que retira representatividade ao seu cabaz); que a qualidade dos bens é constante e não varia (improvável, se pensarmos em toda a informática e electrónica); ou que não vão surgindo estabelecimentos (ou mesmo ‘modelos de negócio’, como a Uber, Amazon, Spotify ou Airbnb) que oferecem os mesmos serviços a um custo mais baixo. Se não levar a sério nenhum desses pressupostos, então terá de concluir que a sua medida de inflação está provavelmente muito sobreavaliada.

Estagnação aparente
O exemplo seguinte, retirado de um paper recente («Fifty years of growth in american consumption, income and wage») pode dar uma ideia desta sobrestimação. O autor, Bruno Sacerdote, começou por olhar para os dados do poder de compra dos trabalhadores abaixo da mediana, constatando a estagnação documentada no gráfico da direita. Mas, no mesmo período (1975-2015), as despesas de consumo – que, supõe-se, dependem dos rendimentos – mostravam um quadro diferente. O número de carros por família tinha crescido, a quantidade de electrodomésticos aumentara, a dimensão das casas era superior e até nas canalizações se notavam melhorias. Tudo isto, associado à disseminação em massa de gadets electrónicos, sugere que a estagnação do poder de compra é mais aparente do que real.

Apesar de a dimensão deste enviesamento ser difícil de saber ao certo, desde há algum tempo que vários economistas recorrem a métodos engenhosos para perceber quanta da erosão do poder de compra é mais aparente do que real. Os desvios calculados são pequenos quando individualmente considerados. Porém, ao actuarem durante muitos anos consecutivos produzem uma diferença acumulada apreciável. No caso do salário horário do trabalhador mediano, as ‘revisões’ propostas fazem com que a estagnação salarial de 1975-2015 dê lugar a um ganho médio anual moderado, entre 0,5% e 1%.

Aumento da desigualdade
Até que ponto é que o mesmo fenómeno não se aplica a muitos outros países? Será que a estagnação salarial em Portugal – já são quase 20 anos sem ganhos reais – não reflecte também a dificuldade em obter medidas precisas da inflação? Não havendo estudos dirigidos a Portugal, é impossível saber ao certo. Mas o facto de os problemas que afectam os organismos estatísticos americanos também dificultam a tarefa do INE português, pelo que é no mínimo expectável que a questão também seja relevante para nós. Provavelmente, o nosso nível de vida real progrediu bem mais do que pensamos quando olhamos para os dados económicos.

Como é óbvio, não são só os salários reais medianos, ou abaixo da mediana, que são afectados por este enviesamento. Os salários ou rendimentos muito altos também deviam ser ajustados pela mesma bitola. Isto é, se acreditamos que os rendimentos dos trabalhadores ‘pobres’ cresceu mais do que os números oficiais sugerem, teremos de estender a mesma conclusão aos salários dos trabalhadores ‘ricos’, e reavaliar a dimensão dos ganhos que acumularam ao longo das últimas décadas. A estagnação de rendimentos pode ser uma ilusão causada pelos dados; o crescimento da desigualdade não.

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