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Sucessão: A vida digital depois da morte

Serviços como a Netflix e a Spotify não se transmitem com a morte do titular aos sucessores. No caso de redes sociais como o Facebook, a página contém informação pessoal, fotografias e outros dados a que os sucessores poderão querer ter acesso. Quanto às criptomoedas, como têm valor pecuniário, os herdeiros poderão ter acesso à carteira de moedas digitais.
23 Dezembro 2019, 09h30

Se o Facebook deixar de crescer em número de utilizadores, então dentro de 50 anos existirão mais perfis de pessoas mortas do que vivas. A conclusão é de investigadores do Oxford Internet Institute, um departamento da Universidade de Oxford. De acordo com este cenário, dos 1,43 mil milhões de utilizadores do Facebook tidos em conta para o estudo, 1,4 mil milhões – ou 98% – já terão falecido em 2100. O número de perfis de pessoas falecidas deverá ser superior a 500 milhões em 2060 e a mil milhões em 2079 – e isto no melhor cenário. “O nosso lastro digital é por norma perpétuo e não desaparece com a nossa morte.

Num artigo recentemente publicado por Carl J. Öhman e David Watson (“Are the Dead Taking Over Facebook? A Big Data Approach to the Future of Death Online”) estes projetavam que em 2070 o número de perfis no Facebook de utilizadores mortos será superior ao perfil de utilizadores vivos. Esta tendência tem levado as plataformas digitais a implementarem mecanismos que facilitam o acesso a perfis de utilizadores falecidos por parte dos seus familiares. Quer isto dizer que, em primeiro lugar, será sempre importante que os familiares recorram aos mecanismos que as próprias plataformas disponibilizam para estes efeitos”, explica o advogado Martim Bouza Serrano, sócio da CCA.

Por outro lado, e no que diz respeito aos dados pessoais, nos termos da lei nacional que assegurou a execução, na ordem jurídica interna, do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), os herdeiros do titular da conta de uma rede social que tenha falecido, e que contenha dados pessoais deste, têm vários direitos, “nomeadamente o de a estes aceder, bem como o de exigir que os mesmos sejam apagados, em determinadas circunstâncias”. “Na legislatura anterior o Governo chegou a apresentar uma proposta de lei para uma ‘Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital’, que previa a adoção do testamento digital: um documento por via do qual, o titular estabelece qual o destino a dar aos seus conteúdos digitais. O projeto de lei não terá avançado mas é importante que o assunto volte a ser debatido”, acrescenta Martim Bouza Serrano.

Sheryl Sandberg, diretora de Operações do Facebook, escreveu num artigo publicado em abril deste ano que seria criado um conjunto de soluções para gerir melhor a questão da morte de utilizadores e “minimizar as experiências que possam ser dolorosas” para os seus entes queridos. Apesar de ser possível converter o perfil de um utilizador que morreu numa página de homenagem (que é gerida de forma diferente), a rede social explicou que este “pode parecer um grande passo que nem toda a gente está imediatamente pronta para tomar”.

Mas um familiar tem o direito de entrar no dispositivo após a morte do titular e ter acesso a conversas e fotos? “Sem prejuízo de estarmos a falar de dados digitais, podemos procurar soluções na lei geral adaptando os princípios aí previstos consoante os casos. Por exemplo, as cartas, memórias familiares ou pessoais e outros escritos pessoais são transmissíveis aos sucessores após a morte do titular e podem, inclusivamente, ser tornadas públicas por eles. A regra no nosso direito é, assim, a de que a nossa informação privada se transmite aos nossos sucessores e não se coloca a questão da invasão de privacidade”, explica Mariana Solá de Albuquerque, associada da Morais Leitão. Sobre o que os utilizadores devem fazer em relação às passwords de serviços como a Netflix ou a Spotify, a especialista da Morais Leitão explica: “Serviços como a Netflix e a Spotify não se transmitem com a morte do titular aos sucessores. No caso de redes sociais como o Facebook, por exemplo, a resposta não é tão linear porque a página contém informação pessoal, fotografias e outros dados a que os sucessores poderão justificadamente querer ter acesso. Em teoria, nestes casos, um tribunal pode determinar o acesso dos familiares que sejam sucessores aos dados digitais, mesmo que estes não possuam as respetivas chaves de acesso, e desde que seja tecnicamente possível fazê-lo pela entidade que gere o dispositivo”.

Orientações para quem fica
A britânica Digital Legacy Association foi criada para ajudar a educar os utilizadores a gerir o que acontece com sua presença online após a morte, oferecendo orientações sobre como deixar suas contas acessíveis às pessoas certas. Até pode fazer o download de um modelo de testamento no site digitallegacyassociation.org. “Os dados digitais na rede continuam mesmo depois da morte de um utilizador, servindo o testamento para indicar o administrador digital que depois do seu falecimento irá gerir transformar a sua(s) página(s)nas redes sociais num memorial, alterar fotos, inserir textos, aceitar pedidos de amizade, enfim tudo o que o administrador digital entender, mas sempre em consonância com o que legalmente tiver sido declarado por escrito pelo falecido. Se o utilizador não indicar no testamento essa vontade, não indicar a pessoa que irá ser o administrador digital, os herdeiros legitimários, o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, segundo as regras estabelecidas para a sucessão, terão direito aceder aos dados digitais”, acrescenta Dantas Rodrigues, da sociedade Dantas Rodrigues & Associados.

Segundo especialistas consultados pelo “Financial Times”, os utilizadores têm livros ou músicas favoritas que podem desejar entregar aos seus entes queridos. Isso significa que devem possuí-las em cópia impressa. Existem outros ativos digitais em que as pessoas têm direitos, mas que não podem ser transmitidos da mesma maneira que objetos físicos. Isso inclui algumas fotografias digitais, direitos de autor, domínios de internet ou conteúdo de e-mail. “Os direitos relativos aos dados pessoais de pessoas falecidas (dados pessoais de categoria especial, que reportem à intimidade da vida privada, à imagem ou a comunicações) devem ser exercidos por quem o titular dos dados tenha designado para tal ou, na falta de designação, pelos respetivos herdeiros. Contudo, também poderá o titular dos dados determinar, através do seu testamento, que os direitos associados aos seus dados pessoais não poderão ser exercidos por terceiros, podendo nesse caso ser o próprio titular dos dados a definir o futuro a dar-lhes”, afirma José Maria Alves Pereira, associado da Abreu Advogados.

Martim Bouza Serrano, sócio da CCA, lembra que o Governo chegou a apresentar na anterior legislatura uma proposta de lei que previa expressamente a implementação de um testamento digital. “A ideia era que, por via desse documento, o seu titular tivesse um suporte por via do qual, deixava estabelecido o destino a dar aos seus conteúdos digitais. Contudo, e enquanto não existirem outras soluções, cada um terá de adotar as medidas que entenda por mais adequadas para, sem comprometer a sua privacidade e a segurança dos seus dados, permita que os seus herdeiros acedam à totalidade do seu acervo digital online”, sublinha o advogado.

A vontade digital pode resolver muitas questões pendentes sobre os desejos do utilizador após a morte. No entanto, alguns especialistas citados pelo “Financial Times” afirmam que se trata de uma declaração de desejos e não de um documento juridicamente vinculativo. “Não obstante o interesse que os herdeiros possam demonstrar em suceder em todas as contas online do falecido, será preciso distinguir as contas que no momento do falecimento conservavam e permitiam o acesso a conteúdos pessoais ou de criação artística (Facebook, Instragram, Tumblr, Youtube, etc.) das contas que são inerentes à prestação de serviços mas que não conservam informação pessoal ou intelectual (Amazon, Spotify, Netflix, etc.). Nestas últimas, os herdeiros poderão ter direito a um extrato ou relatório de atividade mas dificilmente em suceder na conta. Em segundo lugar, entende-se que a forma de sucessão de contas não deverá passar pela transmissão da password. As passwords são chaves pessoais e intransmissíveis que permitem ao prestador de serviços assegurar que a conta não foi usurpada, utilizada indevidamente e que não se verifica a usurpação da identidade do titular. Assim, para o efeito e como referido anteriormente, deve ser designada em testamento a pessoa de confiança para exercer os direitos do titular de dados pessoais e/ou a pessoa para gerir os serviços online contratados”, explica Sónia Queiroz Vaz, advogada associada sénior da Cuatrecasas, onde é a coordenadora do departamento de Propriedade Intelectual, Dados Pessoais e TMT.

O caso das criptmoedas
No caso das criptomoedas, estas ficarão no mundo digital ou é possível deixá-las em testamento? “Sendo uma realidade recente, a definição jurídica de criptoativo apresenta-se ainda como uma incerteza. Com efeito, são várias as questões que se colocam quanto a estes ativos, sendo que uma delas se prende com a sua transmissibilidade e a validade jurídica de tal negócio. Ora, associado a esta incerteza temos que considerar que os criptoativos são, regra geral, transmitidos através da denominada blockchain, o que implica uma formalidade diferente da associada ao testamento. Assim, a transmissão de um criptoativo através do testamento terá que ser realizada offline, ou seja, a transmissão terá que ser assegurada através da transmissão das keys que dão acesso ao criptoativo, podendo contudo tal transmissão ser indicada em testamento”, indica José Maria Alves Pereira, associado da Abreu Advogados.

Para Sónia Queiroz Vaz, advogada sénior da Cuatrecasas, as criptomoedas, ainda que sejam bens imateriais, têm um valor pecuniário. “Assim, na sucessão, os herdeiros são chamados a ser os novos proprietários do acervo patrimonial do falecido, no qual se incluem as criptomoedas. Poderá haver alguma dificuldade na implementação prática da sucessão, uma vez que será necessário provar junto das empresas que gerem as carteiras das criptomoedas que o titular faleceu e que os herdeiros são os novos proprietários das criptomoedas. Em vida, será essencial analisar os termos e condições de cada gestor de carteira de criptomoedas antes da celebração do contrato de gestão de carteira, para compreender como lidam com a sucessão destes bens”, explica Sónia Queiroz Vaz.
Por seu lado, Dantas Rodrigues, da sociedade Dantas Rodrigues & Associados, explica que com tanta tecnologia à disposição, em breve “o nosso legado e nossa última vontade serão declaradas não perante o notário, escrito no seu livro de notas, mas a modo do atual testamento cerrado (escrito assinado pelo testador) mas em vídeo-testamento”.

“Os ativos digitais são diferentes de outros ativos, como objetos de ouro, jóias, ações ou obrigações. Atualmente, se for portador de criptomoedas e se falecer, a transmissão só é possível se indicar no testamento ou no testamento indicar o procedimento, para o herdeiro ter acesso à sua carteira de moedas digitais. O nome de utilizador e password, sem estes acessos (chaves) não haverá a transmissão de criptomoedas, ficarão no mundo digital”, conclui.

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