Ontem, logo cedo, na manhã do dia seguinte às eleições, fui tomar a bica do costume. Entrando no café da rua, uma senhora de idade aborda-me, pergunta primeiro se sou português, digo que sim, e, em seguida, pergunta se o Chega ganhou as eleições. Digo que não e explico que quem venceu as eleições foi a AD.

Ela insiste – mas não foi a direita que ganhou? Confirmo, mas que o Chega foi só o terceiro partido mais votado, quem venceu as eleições foi a AD do Montenegro. Senti no olhar firme da senhora uma dúvida sobre se eu a enganava. É este o quadro. A desconfiança anda à solta e a AD venceu com uma vitória de Pirro. Governará com o apoio da IL e sobreviverá à oposição se o Chega, ufano, o permitir.

A governabilidade do país meteu-se numa alhada em tempos tremendamente exigentes, que exigiriam outras condições.  A direita vai governar com apenas um terço do parlamento do seu lado e pouca margem de apoio além dos oito deputados da IL. Acordos com o Chega seriam acordos com o partido com o maior nível de rejeição e que, apesar de ter alcançado a posição de terceira maior força do parlamento (aliás, de sempre), só vale um quinto do eleitorado. Não se recomenda sem elevar ainda mais o risco em que já se encontra o regime.

Acordos com o PS na forma de bloco central só serviriam, pelo contrário, para fazer transitar o parlamento tripartido para uma nova configuração que polarizaria ainda mais o Chega como alternativa de protesto. Sob a encenação das distâncias devidas a cada parte, o Chega deve abster-se quando chegar o dia de ter de votar o Orçamento do Estado proposto pela AD+IL. Mas até esta licença para governar assusta. Será preciso muita inteligência a governar, mas também a fazer oposição democrática nos próximos meses. Isto se quisermos manter os valores constitucionais e de Abril a salvo.

Independentemente dos desafios de governabilidade, muita coisa muda depois destas eleições. Quando mais três quartos de milhão de portugueses decidem votar, fazendo recuar a abstenção para valores do século passado, há motivos de satisfação pela democracia. Esta participação não pode ser relativizada.

Contudo, quando o partido que mais cresce é o Chega, triplicando a votação das últimas eleições, com um aumento de eleitores da ordem precisamente dos três quartos de milhão de eleitores, os motivos são de reflexão. Haverá novos eleitores do Chega provindos do eleitorado de outros partidos, até da CDU, mas a grande maioria vem de cidadãos que não votavam.

A democracia ficar a dever ao Chega uma maior participação eleitoral, além de uma perversa ironia, revela o conformismo como anos a fio não se representou uma parte significativa da sociedade portuguesa, que precisava de ser escutada e ganha para a democracia. É esse o trabalho mais urgente para a esquerda.

As centenas de milhares de votos que o PS perdeu face a 2022, muitos então obtidos como voto útil, nem sequer regressaram, pelo menos na sua maior parte, aos outros partidos de esquerda.

Apesar de muitos mais eleitores terem participado da votação, o BE manteve a votação de 2022, a CDU perdeu dezenas de milhares de votos. Apenas o Livre cresceu e bastante, mas considerados todos, os três partidos não absorveram os votos perdidos pelo PS nem obtiveram benefício nenhum da abstenção menor. O PAN também cresceu eleitoralmente, embora só tenha conseguido eleger a sua líder. A derrota da esquerda é dupla: perdeu o poder e perdeu o protesto.

Estes resultados significam que o PS é castigado pela forma como desbaratou uma maioria absoluta que lhe foi concedida há dois anos. Distribuam-se as responsabilidades como se quiser, muitas do Ministério Público (falou-se de golpe a dado momento), quiçá também do Presidente da República, mas, sem dúvida, a fatia maior cabe ao PS e à maneira como não soube prevenir-se do que veio a suceder, apesar de dispor de uma maioria absoluta. Agora, resta saber ser oposição num tempo em que urgia ideias claras e um governo forte.

O mundo enfrenta conflitos graves que podem conduzir nos próximos anos a transformações da ordem internacional, começando desde logo pela União Europeia e as finalidades a que ela se propõe. O que fica é um governo de direita fraco, refém de acordos, assombrado por 48 deputados com o discurso anti-sistema “todos são iguais”, decerto pronto a inflamar nacionalismos e alianças nacionalistas e a encher o debate político de gritaria moralista em torno de agendas ultra-conservadoras. Os tempos são exigentes para governo e oposição. E esse deve ser um entendimento comum.

Os resultados também significam que a esquerda à esquerda do PS, apesar da sua vocação de oposição, não está a atrair o voto de protesto. Parte do fracasso dever-se-á aos compromissos passados com o Governo PS e que se pagam caro quando se exige ser oposição. Já em 2022 essa factura fora apresentada. Nem por isso fizeram mal. A responsabilidade nem sempre é bem recompensada. Mas somam-se a estas, outras razões.

No caso da CDU, prossegue um declínio que será inexorável se nada for feito. O trágico é que a CDU acha que a receita é precisamente nada ser mudado e reafirmar a mesma organização da acção e a mesma forma de escolha de liderança. E tanto mais trágico quanto a sua memória de linhas vermelhas, a sua capacidade de amarrar causas numa leitura de classe, ganham especial relevância neste tempo.

No caso do BE, apesar da sua vitalidade e o inegável carisma da sua liderança, é um partido que representa pouco a efervescência de mudança destes tempos. A geração pandemia não está com o BE, o BE também não parece capaz de aderir às exigências de transição de paradigma para a ecologia e o pós-crescimento. Melhor está o Livre, cujo trabalho programático vai arriscando mais, tendo elegido pelo Porto finalmente um inequívoco defensor do RBI. Haja ao menos mais debate em torno de uma rearticulação ideológica.

Antes de ser poder ou protesto, a esquerda, sobretudo à esquerda do PS, tem de se conceber fortemente programática, capaz de ligar causas numa narrativa para estes tempos de transições drásticas, para eleitores que já as sentem na pele, para gerações que precisam de reencontrar as palavras ‘esperança’ e ‘vontade’ nos caminhos da política, em vez de apocalípticos, cínicos, tacticistas, por brilhantes que sejam. Mesmo que a acusem de ingénua, é preciso uma esquerda com menos certezas absolutas e mais convicções modestas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.