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Totalitarismo fiscal

Impor mecanismos/procedimentos que constituem um policiamento de cidadãos, por cidadãos, não será o modo mais eficaz, nem socialmente mais equilibrado, de combate a procedimentos ilícitos de transferência de capital, que devem ser garantidos pelo Estado, através das autoridades públicas com atribuições fiscalizadoras.
26 Novembro 2019, 07h15

Através de diversos meios, em variadas áreas de atividade económica, sob diversas nomenclaturas, com diferentes obrigados e/ou fiscalizados, tendo como fonte diplomas do Estado Português, ou da União Europeia, assistimos à proliferação de legislação cuja finalidade é o estabelecimento de mecanismos/procedimentos que visam estabelecer um controlo sobre a circulação de capitais, a forma como a mesma é feita e quem a faz.

Entre a legislação a que aludimos contam-se o Regime Jurídico de Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, e outras regulamentações com esta conexas, designadamente, no campo imobiliário, o Regulamento do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção de prevenção e combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo no setor imobiliário, o Regime Jurídico do Registo Central do Beneficiário Efetivo, e o regime legal que colocou fim às sociedades anónimas puras, com a introdução da proibição das ações ao portador e o estabelecimento do regime imperativo de ações nominativas.

Esta necessidade de identificação do “O quê?”, do “Como?” e do “Quem?”, levou a que fossem implementadas obrigações que recaem sobre entidades públicas e privadas, sem atribuições de autoridade fiscalizadora, mas que praticam atos ou exercem atividades comerciais inseridas nessa cadeia de atos, de identificação e reporte de práticas ilícitas de movimentação de capitais, fora dos limites legais.

Entre essas entidades contam-se conservadores do registo predial responsáveis pelos Balcões Casa Pronta, notários, advogados, agentes imobiliários, contabilistas certificados, entre outros.

Estas entidades estão obrigadas a identificar nos diversos atos que praticam ou em que têm intervenção, que capitais estão envolvidos e qual a sua proveniência, como é que foi realizado o seu trajeto de transferência no âmbito de um pagamento, e quem são os beneficiários efetivos quer na parte ativa, quer na parte passiva, da operação.

Estes atos de fiscalização que agora proliferam, oneram não só entidades públicas até então desprovidas de função fiscalizadora, mas também entidades privadas, oneradas com funções “para-públicas” de fiscalização, no desenvolvimento de atividades profissionais ou comerciais, que acabam por ser oneradas com funções que são atribuição do Estado, encarecendo o exercício económico privado, retirando dessa forma capital à economia.

Mas nesta saga de totalitarismo fiscal há também situações curiosas, como o facto de, tendo terminado a 31 de Outubro último o prazo legal para a realização da inscrição das entidades sujeitas a Registo Central do Beneficiário Efetivo, os Balcões de Casa Pronta ainda não terem forma de consulta direta daquele Registo, que tem de ser feita antes da realização dos contratos que titulam.

Seja por finalidade de combate à criminalidade, ou à evasão fiscal, vigoram no ordenamento jurídico português diversas disposições cuja finalidade temos como positiva, e saneadora não só da vida económica, mas também social. Contudo, a oneração de entidades, em especial privadas, sem atribuições fiscalizadoras, com a obrigação de realização de tarefas normalmente reservadas às autoridades públicas, sancionada por penalidades em caso de incumprimento, é, no nosso entender desproporcional, e distorce as posições relativas dos agentes na sociedade.

Impor mecanismos/procedimentos que constituem um policiamento de cidadãos, por cidadãos, não será o modo mais eficaz, nem socialmente mais equilibrado, de combate a procedimentos ilícitos de transferência de capital, que devem ser garantidos pelo Estado, através das autoridades públicas com atribuições fiscalizadoras.
Não obstante, aguardaremos o reporte estatístico das obrigações ora introduzidas após o seu primeiro ano de aplicação, a fim de aferir a sua eficácia prática no combate às práticas sinalizadas pela lei.

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