As pessoas da minha geração, e as mais velhas, viveram um tempo em que a realidade se cruzava com a ficção no que à intervenção dos agentes dos vários serviços secretos dizia respeito.

Entre o Grupo Cambridge Five, os livros de ficção de John Le Carré, ou as “famílias modelo” americanas que afinal o não eram, vimos de tudo um pouco.

Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, certamente todos acreditámos que o mundo tinha mudado, e mudado para melhor. Mesmo muitos daqueles que, apesar de adultos, cultos e informados, nunca tinham lobrigado que a Leste de Berlim os povos viviam sob uma ditadura, perceberam então que, de facto, assim era e são hoje estrénuos democratas.

Ainda bem que assim é!

A dúvida que hoje me atormenta é a de saber se o mundo mudou assim tanto como nós, na nossa boa-fé, pensámos que tinha mudado. Dúvida que resulta, no essencial, da notícia que de seguida se reproduz, e que foi publicada na revista “L’Express”, de 23 de Junho de 2022.

Países Baixos

Espião russo identificado. Estava prestes a iniciar funções como estagiário no Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia.

Um agente do GRU – o departamento central de inteligência russo – foi detido em abril, segundo revelaram as autoridades neerlandesas a 16 de junho. No momento em que o TPI conduz investigações sobre crimes de guerra na Ucrânia, “ele poderia ter tido acesso a informações e pessoas de grande interesse e poderia ter influenciado alguns negócios”, especifica o diário “De Telegraaf”.

Sergey Vladimirovitch Cherkasov, de 36 anos, fazia-se passar por Viktor Muller Ferreira, cidadão do Brasil, país onde tinha chegado em 2010.

Lida atentamente, percebe-se que não estamos a falar de espionagem industrial, de um recrutamento pontual ou de aproveitar uma oportunidade de um russófilo, disponível para colaborar. Antes evidencia planeamento, uma estratégia de longo prazo e, acima de tudo, uma apurada noção das instituições internacionais relevantes.

A notícia não teve grande repercussão na comunicação social, nem foi objecto de comentários relevantes. Julgo, no entanto, que ela suscita, pelo menos três questões.

a) A da necessidade de informar a comunidade do grau de ameaça existente. b) A de sabermos se este é um fenómeno recorrente ou se é um caso isolado. c) A de sermos tranquilizados quanto à operacionalidade e eficácia de quem tem por missão combater estes fenómenos.

Sabemos que o segredo de Estado impõe especiais cuidados, e bem, à divulgação deste tipo de informações. Apenas precisamos que os responsáveis nos tranquilizem e nos digam que a Guerra Fria acabou mesmo. Até porque, caso assim não seja, a sociedade tem que ser informada e mobilizada.

O autor escreve de acordo com a antiga ortograa.