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Traços de Viagem: Ou como partilhar uma ficção

Nenhum viajante vê nada verdadeiramente visto. Vê o que leu e ouviu, lê o que viu e sentiu. Ao escrever ou desenhar imaginadas realidades exóticas, finge esquecer que não há outra realidade que não a da ficção partilhada.”
27 Outubro 2017, 11h30

Ficção ou realidade – tal como a existência de um certo Preste João que, segundo Marco Polo terá morrido no início do século XIII, às mãos de Gengis Cã –, muito provavelmente um misto das duas pois uma viagem desperta constantemente a memória do viajante, a sua capacidade de estabelecer analogias, de anotar diferenças, de se comparar com o Outro, baseado, como diz Manuel João Ramos, no que viu, leu, ouviu e sentiu. Antes de partir, sublinhe-se.

Para além da descrição das viagens, com palavras e desenhos, é destas camadas que nos enformam que também fala “Traços de Viagem”, editado pela Bertrand: dos livros que o autor leu e que o fazem ver determinada cena de uma maneira e não de outra; que uma determinada paisagem o surpreende – por exemplo, na Galiza, ao sair de Vigo em direcção às Rias Altas, antecipava destroços de navios encalhados, talvez ecos de leituras juvenis, e o que encontra são umas exóticas “palmeiras encharcadas, sem cor e sem sombra”; ou que por detrás de uma triste história de amor pode estar uma proibição ditada pela tradição, como a de que uma beduína não casa com um sudanês.

Mas é também sobre a necessidade de nos conseguirmos libertar desse lastro e de olhar com os olhos curiosos da infância, de saber ouvir, de saber cheirar e de nos maravilharmos com o odor do café a torrar misturado com o incenso no queimador, e depois acrescentado com um pouco de cravinho, cardamomo e canela, preparado por uma matriarca etíope.

Manuel João Ramos é Professor de Antropologia no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e tem viajado pela Europa e por África, como etnógrafo e desenhador. O interesse pela etnografia produzida pelos missionários jesuítas nos séculos XVI e XVII sobre a Abissínia (como se chamava na altura ao reino cristão da Etiópia) e a escassez de estudos sobre a literatura oral abundante no norte deste país africano levaram-no à Etiópia e, posteriormente, a trabalho de investigação em conjunto com diversos especialistas etíopes. Em Portugal, na Etiópia e noutros países tem desenvolvido estudos antropológicos num caráter multidisciplinar, no cruzamento da antropologia com outras disciplinas, mantendo assim uma perspetiva mais alargada dos seus objetos de estudo.

A sugestão de leitura desta semana da livraria Palavra de Viajante

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