Com a aproximação das eleições legislativas, a atenção mediática das últimas semanas tem-se focado na política interna. É normal que assim seja, e sê-lo-á também na próxima semana, à qual se seguirão os cenários pós-eleitorais. Como notou o ministro João Gomes Cravinho, a política internacional esteve notoriamente ausente da pré-campanha. Neste contexto, talvez haja o risco de se esquecer ou menorizar as guerras ou atrocidades em curso. Mas essa é uma armadilha na qual não devemos cair.
Pela minha parte, dei por mim a ler alguns livros recentes sobre o conflito israelo-palestiniano. Ficam aqui algumas notas sobre eles, à laia de recomendação, para quem queira conhecer histórias marcantes, ou simplesmente refrescar a memória sobre os episódios que antecedem a presente situação.
A mais breve história de Israel e da Palestina
Começo por um trabalho histórico que serve de excelente introdução às origens e evolução do conflito. Em “A Mais Breve História de Israel e da Palestina” Michael Scott-Baumann, especialista em história do médio oriente, apresenta-nos uma versão bastante concisa e equilibrada desta história. Originalmente publicado em 2021, o livro já conheceu diferentes versões e aquela que se torna agora disponível em português inclui um prefácio atualizado tendo em conta os ataques de 7 de outubro.
Esta história foi escrita para ser acessível ao grande público, mas nem por isso faz concessões na explicação das questões complexas que necessariamente aborda. Estruturada em capítulos curtos, os quais começam sempre com algumas perguntas iniciais que o capítulo trata de responder, inclui múltiplos testemunhos de pessoas envolvidas em cada um dos episódios históricos, e tenta sempre contextualizar com nuance os factos apresentados e as múltiplas interpretações dos mesmos, quer se trate de perspetivas sionistas, revisionistas, ou palestinianas.
A narrativa começa com as origens do conflito na Palestina sob domínio otomano do século XIX, retratando o surgimento do sionismo e a instalação dos primeiros colonos judeus e a tensão que desde logo se instala entre as inevitáveis duas possibilidades neste encontro, vizinhança pacífica ou inimizade.
A partir daí, segue todo o fio da história, passando pela administração britânica, as guerras e intifadas, os Acordos de Oslo, a criação da Autoridade Palestiniana e o surgimento do Hamas, chegando à era de Netanyahu e à resposta aos recentes ataques. O livro termina com a defesa de um acordo internacional “baseado na igualdade e na justiça” permitindo que israelitas e palestinianos “vivessem em paz e segurança”, e tendo como base o direito dos palestinianos à autodeterminação e igualdade de direitos (p. 234).
Um dia na vida de Abed Salama
Os dois outros livros que trago aqui à colação não pretendem constituir-se enquanto histórias globais do conflito e, pelo contrário, entram no domínio da narrativa pessoal, com aquele murro no estômago que assombra qualquer pai ou mãe: a perda de um filho. O conflito israelo-palestiniano está infelizmente povoado de histórias sem fim deste género. “Um Dia na Vida de Abed Salama: Anatomia de uma tragédia em Jerusalém”, da autoria de Nathan Thrall e publicado em Portugal pela Zigurate, ilustra de forma particularmente aguda este drama.
Thrall é um jornalista e ensaísta norte-americano que vive em Jerusalém. É um observador atento e crítico do conflito israelo-palestiniano, tendo trabalhado vários anos no International Crisis Group, onde dirigia um projeto israelo-árabe. O livro lê-se como um romance, mas na verdade não é um trabalho de ficção. Retrata a história de Abed Salama, tendo como pano de fundo um acidente com um autocarro escolar nos arredores de Jerusalém, no qual morreram várias crianças, incluindo Milad, filho de Abed. Milad tinha cinco anos.
O acidente aconteceu numa área controlada por Israel e o autocarro ardeu mais de meia hora enquanto se esperava por ajuda. E se neste relato se lê a negligência e o descuido que tornaram a tragédia possível, também sobressai a coragem de pessoas como Huda (médica da UNRWA), Ula (professora da escola das crianças) ou o hebronita Salem, que salvaram várias crianças.
Através da história de vida de Abed, percorrida em várias décadas, mas também das histórias de outras pessoas envolvidas no acidente, dos condutores aos médicos e ao pessoal de resgate, temos na verdade um instantâneo das múltiplas complicações de uma Cisjordânia segregada, e das relações que nela se entretecem. Eis, pois, um retrato lúcido que não deixa esquecer um evento marcante e que, através dele, nos deixa entrever muito mais.
“Apeirogon: Viagens Infinitas”
O terceiro livro que aqui vos trago é “Apeirogon: Viagens infinitas”. Escrito pelo escritor irlandês Colum McCann, publicado pela Porto Editora e já antes recomendado nas páginas do Jornal Económico é, nas palavras do autor, um “romance híbrido” (p. 493) cuja narrativa entrelaça factos, testemunhos e imaginação. McCann trabalhou com várias organizações sem fins lucrativos, como a Narrative 4, que se foca no poder da partilha de histórias, e o grupo Telos, que visa procurar soluções para conflitos que parecem irreconciliáveis, e esse trabalho foi importante para o livro.
Trata-se de uma obra de grande virtuosismo, escrita em 1001 fragmentos, fazendo jus à ideia de perspetivismo e à figura do “Apeirogon”, um polígono com um número infinito de lados. Também aqui é de perda que se trata, mas com uma abertura para uma redenção possível, remetendo-se igualmente para protagonistas reais.
No livro seguimos o fio das vidas de Rami Elhanan, israelita, cuja filha de 13 anos foi morta por um bombista suicida; e Bassam Aramin, palestiniano, que perdeu a filha Abir, atingida pela polícia fronteiriça. E esta é a história da forma improvável como se aproximaram através do movimento Combatentes pela Paz, acabando por criar empatia e desenvolver amizade, reconhecendo humanidade um no outro. Neste momento, são um dos símbolos da possibilidade de diálogo entre ambos os lados, e críticos da ocupação israelita.
Ainda o cessar-fogo
Bem sei, numa altura em que a situação em Gaza continua a piorar a olhos vistos, em que a UNRWA viu vários países suspenderem o seu financiamento, e não havendo sinais de que Israel esteja disposto a abrandar, nas palavras de Volker Türk, alto comissário da ONU para os direitos humanos, as “práticas de punição coletiva” contra os habitantes de Gaza, agora cada vez mais votados à fome, apelar ao diálogo ou à empatia continua a soar a utopia, ou até à suspeita de equivalência moral numa situação que é tudo menos simétrica.
Voltamos, portanto, ao mesmo: é necessário quebrar o ciclo da violência, e isso terá de começar com um cessar-fogo e um processo de paz, tal como é preciso devolver os reféns às suas casas. Biden parece apostar que o cessar-fogo está para breve; a realidade parece desmenti-lo. Esperemos que não por muito mais tempo, até porque este se torna exíguo para a população de Gaza.