Nas últimas semanas, ao abrigo do estado de emergência, foram decretadas medidas de excepção que colocaram em suspenso um conjunto de direitos, liberdades e garantias cívicas e laborais. É certo que tal ocorreu a título temporário, mas ainda assim importa estar vigilante para que, passada esta fase mais aguda de ameaça da Covid-19 e das vagas recorrentes que se esperam, a crise em curso não sirva de pretexto para sacrificar os direitos dos trabalhadores perante o altar da tão desejada recuperação económica.
De facto, perante a urgência de se combater a pandemia, nas últimas semanas relegámos para segundo plano uma discussão importante sobre os direitos dos trabalhadores. Alguns exemplos?
Primeiro: os trabalhadores que prestam serviços públicos essenciais em contexto de pandemia, sejam eles profissionais de saúde ou dos supermercados, funcionários de lares, bancários, trabalhadores de farmácias, entre muitos outros, não deveriam auferir de um subsídio de risco?
Segundo: é aceitável que inúmeras empresas e sectores tenham suspenso os processos negociais relativos a 2020 e 2021, remetendo para uma data mais ‘oportuna’ a negociação de cláusulas laborais e de actualização pecuniária?
Terceiro: é admissível que metade dos desempregados não tenha acesso ao subsídio de desemprego? E o que dizer dos trabalhadores independentes, dos falsos recibos verdes, dos empresários em nome individual ou dos empresários das micro-empresas, remetidos para o caixote do quase esquecimento?
Quarto: tem sentido que os layoff, as suspensões totais ou parciais da prestação de trabalho, incidam, e de forma apenas parcial, sobre a remuneração base, deixando de fora componentes regulares e importantes da remuneração dos trabalhadores?
Quinto: é eticamente aceitável que empresas de serviço público, com contrato de concessão, recorram ao mecanismo de layoff?
Sexto: vamos reabrir as escolas sem assegurar as condições de higiene, distanciamento social, desconcentração espacial e os equipamentos de proteção individual a alunos, professores e demais pessoal escolar?
Os exemplos poderiam continuar, claro está.
Gostaria ainda de notar que os maiores bancos têm vindo a suspender a distribuição de dividendos, enquanto outros operadores financeiros, quase sempre subsidiários de empresas não nacionais, mantêm a remuneração dos seus accionistas, com isso não acautelando o reforço da solidez que, em caso de necessidade, permitirá manter a operação e os postos de trabalho. Sobre isto, curiosamente, o regulador nada diz?
No essencial, as medidas de emergência coartaram, e bem, direitos de circulação, impuseram confinamento social e encerraram algumas actividades. Contudo, de forma que me deixa perplexo, permitiram legislar por decreto em matérias que afectam os trabalhadores, sem que tenham beliscado o interesse das sociedades anónimas e dos seus accionistas.
Por tudo isso, há nuvens carregadas no horizonte da negociação colectiva. O quase imperativo de recuperação económica, a que todos aspiramos, poderá trazer a tentação de um modelo mais desregulamentado, fazendo pairar o espectro de que o layoff ou o teletrabalho se tornem o ‘novo normal’, com isso precarizando vínculos laborais e fragilizando as formas organizadas de representação laboral.
O dever de vigilância de todos aqueles que trabalham não pode abrandar, sob pena de um mundo novo estar a chegar.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.