Farto de andar para trás e para a frente com o texto daquele tratado, o representante do Ministério da Justiça lançou uma farpa ao Embaixador: “O problema dos diplomatas é que vocês não acreditam que as palavras têm significado”.

Tantas vezes presente nos tabuleiros internacionais, esta tensão entre a precisão jurídica e o pragmatismo diplomático já se está a fazer sentir nas negociações – que formalmente só arrancam na próxima segunda-feira – da primeira convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) contra o cibercrime.

O choque destas visões tem sido evidente nos países da União Europeia (UE), que votaram contra a existência destas negociações e não submeteram qualquer proposta de convenção aos trabalhos preparatórios – ao contrário da Rússia. A falta de entusiasmo do bloco reflete uma certa predominância da perspetiva legalista: quanto mais se avançar na ONU, mais enfraquecida ficará a convenção sobre o cibercrime do Conselho da Europa, a principal referência internacional já ratificada por 66 países – mas não pela Rússia. Os procuradores da UE entendem, no fundo, que os dois instrumentos não poderão ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo e sentem calafrios ao ler as 69 páginas de artigos propostos por Moscovo para regular o ciberespaço.

A ideia original russa, de que as seis rondas negociais da ONU se realizassem em Nova Iorque, onde estão representados todos os 193 países e as decisões são tomadas por maioria simples, também gerou desconforto. Menos mal que, à última hora, se tenha deliberado realizar metade dos trabalhos dentro do espírito de consenso de Viena, sede do Escritório da ONU sobre Droga e Crime.

Mesmo tendo muitos deles formação jurídica, a generalidade dos diplomatas pensa de maneira distinta. Avaliam a longevidade de um tratado, não tanto pela letra da lei, mas pela cobertura dos diferentes interesses nacionais em jogo num dado contexto histórico.

Sabem, por isso, que Rússia e China jamais assinarão a convenção do Conselho da Europa, recentemente atualizada com um protocolo que facilita a partilha de dados entre Estados. E que, estando obrigada a acomodar os interesses de todas as regiões, a convenção da ONU nunca terá a profundidade do instrumento europeu, elaborado sobre um denominador cultural coeso. Se o processo europeu, liderado por procuradores, foi sobretudo técnico, o da ONU será inevitavelmente político.

Por outro lado, os diplomatas não atribuem particular ênfase à futura coexistência das convenções. O convívio entre normas internacionais e regionais está consolidado noutras áreas e o verdadeiro canal de cooperação acaba por ser sempre o bilateral. São até disso exemplo os novos programas de cooperação de Portugal com Moçambique e São Tomé e Príncipe, que se referem pela primeira vez ao cibercrime, tal como se espera que ocorra com o de Angola.

Uma vez que trabalham num ambiente político, os diplomatas processam mais rapidamente o comportamento da opinião pública. Diante da crescente preocupação com a insegurança digital, e da própria massificação dos ciberataques a alvos como a Cruz Vermelha, reconhecem que o mundo necessita de um instrumento globalmente aceite – mesmo que depositem pouca esperança no seu cumprimento. Neste contexto, admitem que a UE pode ter cometido um erro estratégico ao deixar o campo aberto para a Rússia, que liderou este processo na ONU enquanto preparava a invasão da Ucrânia e cuja proposta de convenção enquadra hoje todas as discussões.

Mas, desta vez, na sala das negociações, não estarão apenas diplomatas e procuradores. Terão também assento atores mais próximos da realidade do terreno, mais vocais e mais independentes dos ciclos políticos. Empresas, universidades e ONG vão dar os seus contributos e, numa carta pública assinada por organizações de 56 países, marcaram já a sua maior preocupação: “qualquer proposta de convenção deve salvaguardar, de maneira robusta e objetiva, os direitos humanos”.