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Uma Ideia para a Madeira e o Funchal

É fundamental ter uma ideia, um objetivo de fundo para o Funchal. E quem diz o Funchal diz, naturalmente, a Madeira.
7 Outubro 2021, 07h15

Há uns 35 anos, encontrava-me eu numa daquelas noitadas de loto com a família alargada, na Ponta Delgada, mal contendo o nervoso e a responsabilidade de, tão petiz, participar ativamente num serão de gente “tão crescida”, daqueles lotos em que o “22” são os “dois patinhos” e em que se repete incontáveis vezes o “63” pois a maioria sénior percebe “73”, quando o inevitável e habitual aconteceu. Uma exaltada discussão política.  De um lado o meu tio-avô, Henrique Romão de Freitas, durante décadas vogal e procurador da Junta Geral, do outro um sobrinho, figura igualmente de grande prestígio na nossa microssociedade, até pela profissão que desempenhava, mas que não vou cometer a indelicadeza de identificar até por ter nessa contenda uma posição mais conservadora. O tio Henrique defendia a já então consolidada expansão da cidade para o Oeste, que nesse tempo significava a zona do Lido, imaginem, enquanto o seu já maduro sobrinho se manifestava contra. Henrique de Freitas foi percursor, com Fernão de Ornelas, da ideia que a cidade do Funchal deveria expandir-se para aquela parte, onde placidamente subsistiam bananeiras. No meio daquela exaltação, a minha vergonha de gritar “linha” acentuou-se, e achei melhor ficar calado.

Quer isto dizer que é fundamental ter uma ideia, um objetivo de fundo para o Funchal. E quem diz o Funchal diz, naturalmente, a Madeira.

A maior qualidade de Alberto João Jardim foi essa mesmo. Ter uma ideia para esta “jangada de pedra” Atlântica.  Primeiro a Autonomia, o reforço dos poderes próprios até ao limite da soberania, as fontes de financiamento estáveis e autónomas, a infraestruturação da Ilha, e o acesso aos serviços básicos a toda a população.

Se há uma dimensão mais previsível, a que se refere à capacidade de execução de obra, Jardim percebeu a certa altura que a Autonomia, mais do que evolutiva – como deveria ser –, é dinâmica. Há situações que implicam regressões de facto, e que têm que ver com governos, coletivos do Tribunal Constitucional, ou outras entidades da República de perfil mais centralizador, crises económico-financeiras, que coartam indiscutivelmente as competências consagradas constitucionalmente a esta Região.

A certa altura o desígnio, a vocação e o objetivo de Autonomia não eram por si só suficientes para completar a ideia de “Madeira”. Daí que tenha sido lançado o ainda hoje famoso jargão da “Singapura do Atlântico”. Percebe-se a intenção, ainda que a analogia não tenha sido a mais feliz. Pretendia-se com isso sinalizar um território aberto ao mundo ainda que limitado geograficamente, com uma economia fortemente liberal e de fiscalidade baixa.

Mas, como é óbvio, há pressupostos no regime singapurense que não nos interessa importar, o que ajudou a dinamitar a ideia, não criando a onda de adesão à causa que se pretendia.

Miguel Albuquerque, quando tomou as rédeas da Madeira,  logo sinalizou um objectivo, uma ideia. Que esta Região superasse os seus constrangimentos, territoriais e de escala, através de uma forte aposta tecnológica, circunscrevendo uma zona de benefícios fiscais para este sector, apostando numa autoestrada de dados redundante que nos desse competitividade e segurança, incentivando as startups e, mais recentemente, promovendo a atracção de trabalhadores jovens de residência temporária, vulgo “nómadas digitais”.

Enquanto estava na câmara municipal, e além de outras vocações, como a de uma cidade profundamente cultural, Albuquerque defendeu um projecto para a cidade que caiu por variados fatores, mas que considero ter sido uma oportunidade perdida: o Projeto do Toco.

Tal como 40 ou 50 anos antes a cidade abraçou a sua parte ocidental, tinha aqui a oportunidade de rentabilizar a sua magnífica costa Este, conjugando turismo sazonal e residencial, atividades náuticas e oferta de luxo.

Talvez possa, um dia, ser recuperado.

É sobre isso que o Funchal e a Madeira se debatem. A persecução de uma ideia e a concretização de uma vocação.  Estou absolutamente confiante que o consulado de Pedro Calado, que dentro de algumas semanas se inicia, saberá sinalizar essa ideia, essa vocação para o Funchal, complementar mas polarizadora relativamente à Região, que nos permitirá ter uma sociedade mais moderna, cosmopolita, com mais rendimentos e melhor qualidade de vida. Uma cidade que, ao contrário do exemplo singapurense, possa ombrear com a oferta premium de uma Montecarlo ou de uma Macau.

Oferta turística diferenciada, habitação de luxo, residência não habitual, fiscalidade baixa a empresas e particulares, atividades náuticas, turismo de cruzeiro e de iates, e eventos desportivos de projeção internacional.

Para tal, e além de encontrarmos novos polos turístico-habitacionais nas margens da cidade (Lazareto-Toco, Ajuda-Amparo-Praia Formosa), é muito importante voltar o centro da cidade para o mar. Toda a dinâmica quotidiana da nossa baixa está de costas para o nosso maior ativo. O Oceano. Com a profunda requalificação de uma marina, e serviços contíguos, que está fora de moda há 30 anos, e que nem a saída do Vagrant foi suficiente para lavar a imagem kitsch, com o aumento do molhe da Pontinha e consequente aumento dos cais de amarragem para os cada vez maiores paquetes, e com a viabilização do fulcral cais 8, que nos dará a vantagem competitiva inigualável de poder aceder a pé à cidade, vindo do mar, urge uma intervenção profunda na Avenida do Mar. A construção do Hotel Barceló e das residências do prédio da Insular vão constituir um eixo que tem de ser rentabilizado. Não é possível manter nessa zona nobre três magníficos edifícios basálticos, com uma localização privilegiadíssima, entregues a serviços da República como são a Alfândega, a Capitania ou a GNR. Faz sentido que ali subsistam? Não faz mais sentido que servissem a vocação, a ideia de uma cidade moderna, turística, premium, ajudando-a a virar-se para o mar? Não é sem razão que essa é a parte mais sombria, menos atrativa desde a zona velha até ao fim da Sá Carneiro. Os edifícios são propriedade da Região e considero um desígnio convencer o Estado a recolocar esses serviços, nobres indiscutivelmente, noutro local.

Por fim, uma cidade com as características que o Funchal tem, não pode ter a oferta de Jogo que hoje tem. Ou a ausência dela. Há possibilidade, quer dentro do atual contexto, quer negociando um outro qualquer, de multiplicar essa oferta indo ao encontro das necessidades do turismo diferenciado, e do público-alvo que a Madeira e o Funchal, mais cedo ou mais tarde, terão de captar.

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