Há dias uma manifestação auto-designada “caminhada pela vida” teve lugar em 12 cidades do país. Isilda Pegado, presidente da entidade promotora, a Federação Portuguesa pela Vida – com a palavra “vida” sempre envolvida –, pediu que se revogasse a lei da eutanásia.
É bom começar pelas palavras. Por vezes, em política, assiste-se ao exercício de subtrair palavras consensuais ao lado que se quer derrotar. É uma pena que assim seja. Porque não elucida e mistifica. Evidentemente, quem está pelo direito à eutanásia e ao suicídio assistido em condições tremendas de sofrimento não está por outra coisa senão pela vida, pelo respeito pela consciência de quem sofre, pela dignidade da vida que tem de ser escutada e acolhida.
Falam de vida como se imaginassem do outro lado uma caminhada pela morte ou uma federação portuguesa pela morte quando, na verdade, o que está em jogo são diferentes entendimentos da vida, provavelmente irreconciliáveis.
Para uns, na vida biológica joga-se sempre a vida humana; para outros não, a vida humana é mais do que vida biológica e, em última instância, quem a vive tem de ser escutado. Podem os primeiros discordar dos segundos, que não há relatividade que justifique escutar, ter em consideração quem sofre isso já é relativismo, mas não é verdadeiro presumir-se que a defesa da vida seja seu apanágio. E o que não é verdadeiro nunca pode ser justo.
Por outro lado, é claro que a alteração da correlação de forças políticas na Assembleia da República e a formação de um novo governo, de direita, veio animar estas pretensões de revogação. Mas, falando seriamente, não devia. A reconfiguração do peso relativo das diferentes forças políticas não torna justas intenções de reverter legislação em vigor, como no caso da IVG (em vigor desde 2007), ou de legislação da morte medicamente assistida, promulgada finalmente a 16 de maio de 2023, no termo de um processo de debate parlamentar e da sociedade civil longuíssimo, que atravessou várias legislaturas. Alguns dos cidadãos que mais pugnaram por esta legislação já não a puderam ver aprovada em vida. Lembro Laura Ferreira dos Santos ou João Semedo.
As bases do auto-respeito da democracia representativa e suas instituições passam necessariamente por não desprezar o que por elas se alcançou. O revanchismo da democracia contra a própria democracia empobrece-a. Este governo não devia ceder à pulsão revanchista que se prepara para assaltar a democracia. É que o revanchismo arrasta tudo. O que resultou de laboriosa e morosíssima discussão, atenta às pequenas grandes diferenças, acaba devorado num “é tudo o mesmo”.
Veja-se esse “Identidade e Família”, que será apresentado pelo antigo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, e que já corre o espaço público como espécie de manifesto da direita conservadora que amalgama todos os monstrengos do medo – a destruição da família, a ideologia de género, a cultura de morte. Até se fala de “direito de resistência” contra a transformação da eutanásia e do aborto em direitos.
Se ao menos soubessem que esse direito de resistência vale pela defesa das consciências individuais contra poderes que as querem subjugar. Ambos os direitos, de IVG e de morte medicamente assistida, são expressão de direito de resistência ao paternalismo, à vigilância e menorização das consciências. Abusam das palavras, dos conceitos e das consciências. Passou o tempo em que havia senhores das consciências alheias, mas não parece passar o tempo em que não se pensa duas vezes.
A este propósito, também surpreende a atitude da Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, ao requerer a inconstitucionalidade da lei da morte medicamente assistida, alegando não estar demonstrada a capacidade do Estado assegurar uma rede de cuidados paliativos robusta.
O que se estranha no argumento da Provedora é que, seguindo-o, somos conduzidos a uma conclusão logicamente absurda: os cidadãos nas desoladoras condições de aplicabilidade da lei, ou seja, “em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável” (artº 3 da Lei n.º 22/2023) têm de continuar a suportar esse sofrimento porque se considera não cumprido o dever de assegurar uma rede de cuidados paliativos, que cabe ao Estado.
Choca a frieza com que se presume que pessoas em sofrimento tremendo tenham de aceitar ver-se sacrificadas a propósito de considerações sobre ineficiências do Estado que lhes não dizem respeito. Uma política que não escuta não é pela vida, é pela opressão.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.