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Valter Hugo Mãe: “Em Portugal, em vez de querermos ser bem pagos, queremos que os outros sejam mal pagos também”

Conversa com o escritor Valter Hugo Mãe, ‘homem imprudentemente poético’ e nome incontornável da nova geração literária, em torno de preconceitos que persistem na nossa sociedade, da inteligência feminina e da Europa atual, que considera “assustadora”.
19 Maio 2018, 10h40

Nascido em Angola, mas radicado em Portugal desde a infância, Valter Hugo Mãe publicou quatro livros nos quais erradicou a letra maiúscula – a chamada “tetralogia das minúsculas” –, lançados entre 2004 e 2010, período em que assinava valter hugo mãe, sem maiúsculas, em sinal de humildade literária. Muito antes da tetralogia, porém, já a poesia lhe acontecia e enchia cadernos atrás de cadernos. A poesia “continua malcriada”, garante, e foi a primeira a arrebatá-lo. Mas já lá vamos.

Quando termina o liceu, Valter Hugo Mãe (VHM) decide estudar Direito e tece uma possível explicação para essa escolha. “O meu pai era um homem generoso e sempre se imiscuiu naquilo que achava fundamental e no que tinha a ver com os valores. Dizer pelos outros foi sempre um valor importante. Talvez tenha estudado Direito muito por causa disso”. Conclui a licenciatura, faz o estágio e exerce como advogado ano e meio. Desiste da advocacia quando percebe que é o caminho mais longo para “salvar o mundo.” A burocracia da profissão enfada-o e o facto de ser uma pessoa “demasiado emotiva”, de ter uma interpretação que “não é racional o suficiente”, faz com que não lhe seja fácil perceber quem é o verdadeiro culpado.

O chamamento da literatura torna-se então mais intenso e decide fazer uma pós-graduação em Literatura Moderna e Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Em 1996, o poeta assume-se e vem a público. O primeiro romance, “o nosso reino”, só surge mais tarde, em 2004. O Prémio José Saramago é-lhe atribuído em 2007 e, nessa ocasião, Saramago afirmou, entre outras coisas, que ler VHM era como “assistir a um novo parto da língua portuguesa”. E é assim que o autor encara cada livro, de poesia ou romance: como um desafio, uma forma de nascer de novo.

Recusando-se a ficar conhecido como o “escritor das minúsculas”, decide inaugurar um novo capítulo, ou nascimento. Com maiúsculas. “O Filho de Mil Homens” chega-nos em 2011 e conta a história de Crisóstomo, que inventa uma família quando chega aos 40 anos sem filhos. Novo desafio, nova superação. Depois, a busca de outras geografias começa a tornar-se premente porque, apesar de o “colocar em perigo”, também lhe permite descobrir “algo de novo”. E isso agradava-lhe sobremaneira, pois trazia em si “a possibilidade de poder encontrar uma matéria-prima que me fornecesse um livro diferente”.

Dos recônditos fiordes islandeses em “A Desumanização” ao Japão antigo, com “Homens Imprudentemente Poéticos”, o seu último romance, outro perigo espreita. VHM apercebe-se que está cada vez mais “severo” com a sua escrita. “Deito muitas coisas fora, começo muitas vezes os livros, mais do que corrigi-los. É uma desgraça absoluta isto que me aconteceu. É uma patologia miserável”. A expressão é séria, mas os olhos brilham. O prazer da provocação, outra expressão para “desafio”. Isso e a franqueza desconcertante. “Tenho um certo orgulho de estar a engordar e de ter sido, de alguma forma, uma criança da qual não se esperava muito”. Novamente o riso, antes de acrescentar que “havia uma humildade na nossa família e na nossa vida que não fazia crer que eu pudesse, um dia, ser entrevistado fosse para o que fosse”.

Essa terá sido uma das razões que o levou a querer conhecer a sua árvore genealógica, tendo concluído que pertence a uma “linhagem de resistência”. Pode dar-nos mais pormenores?

Eu gosto muito disso, de saber que sou de uma longa família de tecelões e tecedeiras. O senhor que elaborou a minha árvore genealógica disse que, se recuasse uns 300 anos, poderia encontrar gente nobre, como é comum em todas as famílias. No fundo, somos o resultado de tanta gente, de tanto século que, naturalmente, algures nos confins do tempo, todos temos um nobre na família. Mas, nos últimos 300 anos, o que se sabia era que a minha família estava estavelmente entregue aos tecidos e às manualidades, e eu acho piada. E para mais somos de um espaço geográfico circunscrito, como se fôssemos uma ‘piscina genética’ muito definida, para o bem e para o mal. [risos] Mas tenho gosto nessa valentia das pessoas comuns.

As mulheres estão muito presentes na sua vida, quer familiar – mãe, irmãs, avós – quer como escritor, uma vez que as personagens femininas nas suas obras são muito fortes. É fácil para si relacionar-se com as mulheres?

Devia dizer que é difícil, mas tem sido fácil. [risos] Na verdade, enquanto homem, talvez devesse fazer um esforço maior para entender as mulheres, para achar que crio uma mulher plausível nos meus livros. E há, da minha parte, uma vontade muito grande, ou melhor, uma sedução muito grande por aquilo que é o lugar da mulher. Para além dos meus pais, e sobretudo a minha mãe, as pessoas que mais me influenciaram na minha vida foram as minhas irmãs. O modo como eu vi o mundo e, eventualmente, como eu quis sonhar o mundo, tem a ver com aquilo que elas me traziam. São mais velhas do que eu e os passos que elas davam na descoberta das suas próprias vidas eram-me exemplares, por isso era aquilo a que eu podia assistir para perscrutar o que seria o mundo.

Eu sou o mais novo. E o meu irmão, antes de eu poder avaliar o que seria, por exemplo, o seu namoro com uma moça, eu tinha para avaliar o namoro das minhas irmãs. E, por isso, as aflições delas enquanto raparigas, o recato que era exigido às moças, todo o código que envolvia o género feminino foi o primeiro ‘padrão’ que chegou à minha vida. Sofri primeiro o que era o começo da vida de uma moça do que o que era o começo da vida de um moço. Mais tarde, quando chega a minha vez de ter determinadas experiências, e até coisas que implicam mudanças do corpo, eu talvez estivesse mais sensibilizado para problemas típicos das mulheres do que para problemas típicos dos homens. Por isso, talvez me fosse mais fácil entender o lugar das mulheres.

E podia entrar nos dois universos. Observar um e outro…

Sim, porque sendo homem era admitido no universo dos homens; e assistindo tão perto às mulheres, podia entender um pouco o que era o mundo das mulheres. E é-me muito claro que o clube masculino se colocava como profundamente predador. Talvez eu não tivesse entendido imediatamente que o clube feminino podia fazer algum jogo para ser a presa, mas àquele tempo agredia-me muito a depredação masculina. Ou seja, parecia-me, tão-só, obsceno e violento. Por exemplo, quando mudamos para Vila do Conde, os rapazes, inclusive os que se aproximavam como amigos, não se coibiam de fazer os comentários mais nojentos sobre as minhas irmãs. Coisa que para mim, que tinha as minhas irmãs como sagradas, me deixava mais do que perplexo, deixava-me aterrorizado contra a vida! Achava que pensar-se nas raparigas, que não tinham sido mais do que simpáticas, daquela forma e verbalizar-se aquelas coisas, era diminuir as raparigas a uma espécie de animal de consumo. As minhas irmãs e a minha mãe eram diamantes puros de cristal. Eram porcelanas finas que nós tínhamos lá em casa, por isso não se lhes podia tocar. Obviamente que odiei que as minhas irmãs começassem a namorar, no sentido em que todos os namoros têm a sua crise, a sua discussão, e eu achava que não podia ser, que não se podia estragar as pessoas. Era demasiado protetor, talvez por assistir aos seus sonhos e por entender o quanto seriam magoadas.

Vou citar uma frase sua numa entrevista, que me chamou a atenção: “as mulheres começam a mostrar muito mais juízo sobre os propósitos do mundo do que os homens”.

Tenho dito isto muitas vezes: os homens já fizeram pelo mundo o que, pelos vistos, sabiam fazer. Por isso, talvez seja a vez de deixarmos as mulheres fazer uma tentativa também. [sorriso] Nos meus livros, eu lido com as mulheres de uma forma pouco paternalista, no sentido em que as exponho a tremendas atrocidades. Aliás, houve alguém que me dizia que, eventualmente, os meus livros, por serem tão sem concessões, pareciam perigar as mulheres. E, de facto, nos meus livros as mulheres estão sempre em perigo. Mas o que eu quero que os meus livros possam exemplificar é o grotesco do mundo dos homens em torno das mulheres. E às vezes não crio redenção, porque eu acho que ainda não houve redenção. No caso paradigmático do “Remorso de Baltasar Serapião”, em que a Ermesinda é maltratada o livro inteiro e não tem uma ínfima oportunidade de vingança é porque me parece que, de facto, as mulheres ainda não tiveram uma oportunidade de vingança. Por isso, por mais satisfatório que pudesse ser ao leitor ou à leitora, sobretudo, seria algo em que eu não acredito ainda. Mas interessa-me muito que a inteligência feminina se torne mais um padrão do mundo.

O Prof. José Pinto da Costa, médico legista e uma pessoa que admiro, explicava-me que, na verdade, não temos um cérebro mas dois cérebros ligados por uma ponte, e que essa ponte é substancialmente mais rica nas mulheres. Ou seja, as mulheres terão cerca de 300 milhões de neurónios a mais na ponte que faz a conexão entre os dois cérebros, o que leva a que as mulheres possam ter um tipo de inteligência que apela a várias valências do cérebro. E isso também justifica que elas possam fazer duas coisas ao mesmo tempo sem que se percam, porque a mulher consegue acionar pontos dos cérebros ao mesmo tempo e com muito melhor resultado. E isto faz, sobretudo, com que ela acione as suas capacidades de uma forma muito mais empática, porque enquanto o homem precisa de focar para lidar com um determinado assunto, a mulher não deixa de estar focada mas consegue, por exemplo, fazer apelo às emoções, consegue acionar uma dimensão emotiva. E isso vai fazer com que a mulher, em última análise, possa ser uma pessoa que se refreia no áspero das decisões para deixar vir ao de cima um traço muito mais humano, muito mais protetor.

Em todo o caso, o homem também tem o seu lado sensível e deve assumi-lo. Acha que caminhamos lentamente nesse sentido?

Sim, vamos caminhando lentamente, embora com alguns retrocessos. Mas, se pensarmos bem, a maior parte das coisas que definitivamente atribuímos ao universo das mulheres parecem ser-lhes exclusivas. A maior parte das coisas que atribuímos ao universo dos homens parecem boas para toda a gente. Por exemplo, se uma mulher adota um padrão mais ou menos masculino, pode ser até elogiada como alguém que ascendeu.

Mas também pode ser rotulada de forma negativa.

Sim, também. Mas é muito normal que uma mulher use calças. No entanto, seria relativamente insuportável que um homem use saia. Isto para mim significa tão-só que o padrão feminino é visto como errado, como não válido para todos. Isto irrita-me! O padrão masculino é bom para todos, enquanto o padrão feminino só é bom para as mulheres. É muito simples ver isto. Por exemplo, a forma como ofendemos as pessoas, ofendemos sempre no feminino. São sempre as mulheres as ofendidas. Podemos estar a tentar agredir um senhor, mas é sempre a mãe dele que é verdadeiramente ofendida. E a palavra que usamos para ofender a mãe dele, se for feminina é uma ofensa, se for masculina é uma coisa terna e querida. Se uma mulher for vagabunda, é porque é prostituta e anda com todos; se um homem for vagabundo é porque não faz nada. [risos] Esta preferência masculina é muito irritante, porque já mostrou que não funciona, não dá bons resultados. A mulher é, no geral, intelectualmente mais capaz de uma pulsão, de uma escolha amorosa. E isso a mim interessa-me muito. Isto pode parecer uma coisa maricas de se dizer, mas as coisas maricas de se dizer parecem ficar mal por causa do preconceito que a sociedade tem em relação à mulher.

Em pouco mais de 40 anos de democracia há muitos preconceitos que continuam enraizados. Acha que a sua geração exerce a liberdade e contribui para consolidá-la?

Parece-me que o que acontece é que as gerações criadas em liberdade e democracia, com alguma leviandade, perdem a noção do valor das coisas. Aquilo que tomam como um dado adquirido torna-se, aparentemente, rejeitável ou banal, e depois colocam isso em risco com alguma facilidade. O que acontece, por exemplo, com os valores nas gerações mais novas, com os miúdos de hoje, que são eventualmente mais conservadores do que eu era enquanto miúdo nos anos 80, é que eu tinha uma esperança em relação ao mundo, talvez ingénua, mas que ainda radicava numa noção de que havia sido feita uma conquista muito recente e ainda estávamos a conquistar algo muito importante. Estávamos a entrar na Comunidade Europeia, abatiam-se muros – enquanto universitário, assisti à queda do Muro de Berlim. Ou seja, a minha geração ainda respirou uma espécie de libertação que a faz temer algum tipo de retrocesso e algum tipo de clausura e de regime. Agora, o que acontece com os mais novos é que eles já não têm este tipo de memória e as coisas parecem-lhes lineares e relativamente enfadonhas. Por isso, o aparecimento de uma certa prepotência, que tem que ver com o reincidir na violência de género, no racismo, na xenofobia, por exemplo, é uma das maiores frustrações.

A Europa atual é assustadora?

Sim, a Europa está assustadora. E isso é absolutamente frustrante para um miúdo com a candura dos anos 80 – que foi uma década de alguma ingenuidade, mas que também foi uma década de profunda esperança – e algo assustador. De repente, percebemos que temos estas gerações a instalarem-se e a cobrirem o mundo com as suas estéticas, e nós a vermos ao longe o atroz que isso pode ser, e estas gerações entretidas, a achar graça. Estamos numa espécie de depois da História, depois da morte dos grandes ideais, como se nos arriscássemos a mudar de paradigma.

As pessoas estão disponíveis para mudar de paradigma?

Se eventualmente estivermos a mudar, estamos a mudar para um paradigma medieval. Não estamos verdadeiramente a conquistar nada de novo, estamos a voltar a alguma coisa muito antiga.

A principal narrativa nos dias de hoje é que a economia vai salvar o mundo. Concorda? Acha, por exemplo, que a criação de um rendimento básico universal pode ser um caminho a trilhar?

A economia, se fosse disciplinada para o bem comum, poderia ter essa tónica redentora. Mas um caminho desses implicaria mudar o ensino, implicaria termos a noção de que não se vai fazer nada enquanto, verdadeiramente, não se educarem as pessoas. Tem muito mais que ver com essa inteligência emocional de que falava do que com a angariação de um conhecimento concreto de uma ciência qualquer. É outro tipo de ciência, é muito mais subjetiva e tem muito mais que ver com o valor humano, com a verdadeira valorização do ser humano.

Acha que as universidades estão a formar massa crítica?

Eu creio que a intenção é caminhar para uma privatização e precarização do ensino público, por isso, infelizmente, a educação estará sobretudo acessível a quem tem condições financeiras para decidir. Diria que estamos, mais uma vez, a regredir para algo muito antigo, que vai fazer com que as pessoas sejam escolhidas por uma espécie de castas. As grandes famílias que já dominaram o país e o mundo vão continuar a fazê-lo, porque vão ser sobretudo elas a aceder à preparação para esse domínio. O cidadão comum será deixado para serviços mais braçais e que sejam oportunos às grandes famílias. A mim entristece-me porque chegámos a um ponto de uma lucidez tão grande em relação ao valor da educação que me parece criminoso que se decida pelo contrário, exatamente para escolher entre uns e outros, para se preferir um certo grupo de pessoas em detrimento da maioria das pessoas.

Regressamos a um elitismo do passado?

As elites sempre tiveram os seus modos de ascensão, sempre tiveram os seus colégios, as suas maçonarias, os seus clubes fechados, onde só se entra por um amiguismo, normalmente financeiro. As elites estão munidas de todas as armas de que necessitam para dominar o mundo. O destruir a escola pública, a escola acessível a todos, é apenas mais um passo. Ao invés de usarem as suas maniganciazinhas paulatinamente, conseguem acabar com toda a gente de uma só vez.

Hoje em dia, que temos acesso a um manancial enorme de informação, muitas vezes tende-se a não filtrar, a não refletir sobre a informação disponível. Há uma profunda contradição.

É verdade. E é o caminho da total desinformação! Uma das estratégias, por exemplo, era impedir que qualquer associação fosse feita de forma secreta, que não pudesse haver atas de reuniões secretas. Que todas as formas de as pessoas se juntarem e colaborarem umas com as outras fossem feitas às claras. Acabar com o favorecimento entre empresários e políticos. Enfim, entre o capital e a política. Enquanto deputados e vereadores puderem ser assessores de empresas privadas no decurso do exercício de um cargo público, é impossível esperarmos que um deputado que recebe uma avença de uma empresa que tenha interesse em alcatifas, por exemplo, legisle a nosso favor, a favor do povo contra as empresas das alcatifas! Se estivermos a falar de coisas fundamentais como a água, os alimentos, as pescas, a agricultura percebemos logo a possibilidade da manutenção de uma situação destas.

Faz parte daqueles que diz que os deputados são bem pagos?

Nada disso, devem ser bem pagos, pois só assim poderão não sentir o apelo de se vender a mais ninguém. Devem ser muito bem pagos e isso é uma discussão absurda, mas talvez isso se deva a estarmos habituados a ser mal pagos em vez de querermos ser bem pagos. Acho que em Portugal temos um pouco esta mania de, ao invés de querermos ser bem pagos, queremos que os outros sejam mal pagos também. Essa mentalidade é frustrante. É uma mentalidade de alguém que, mais do que querer ser vencedor, quer ser perdedor, ou ser perdedor acompanhado. E isso é uma das coisas tristes do país. E é também partir do pressuposto: ‘eu não vou conseguir, logo, é melhor que o outro também não consiga’.

No seu último romance, “Homens Imprudentemente Poéticos”, escolheu o Japão como território a explorar. Aí, o conceito de não ‘perder a face’, a honra, ainda hoje é muito forte. Ou seja, temos o oposto, uma sociedade que não cultiva o sentimento perdedor e que é capaz de uma enorme disciplina e capacidade de cordialidade.

A história do Japão, até muito recentemente, é uma história de atrocidade. Estamos a falar de um dos povos mais violentos, mais antagónicos, ferocíssimos, com um espírito de guerra contínuo e impiedoso. E o que me fascina é a possibilidade de construir em cima de uma das nações mais combativas do mundo, o conseguir criar, em tão pouco tempo, uma cultura de bem-estar e de cordialidade admiráveis, de capacidade de diálogo, de espera, de respeito pelo outro. Inclusive a capacidade de abdicar de si mesmo e começar por um conceito coletivo de cada um, ou seja, cada um se vê primeiro como pertença a um grupo e depois é que se define enquanto pessoa. E esse Japão interessa-me muito, o país que criou a metrópole mais segura do mundo. Em Tóquio é praticamente impossível sermos assaltados, ainda que possamos fazer um esforço enorme, não nos roubam, não nos empurram, não nos enganam nas filas. A minha curiosidade é perceber até que ponto é que esta cordialidade não é uma estética deitada sobre uma cultura que, mais tarde ou mais cedo, possa irromper outra vez, como se fosse uma cosmética. Mas talvez eu prefira um país capaz de criar uma cosmética cordial, social, que faça com que exista uma pragmática que protege as pessoas, a sermos deglutidos por esta espécie de correção e incorreção política, que nos transforma em seres muito frontais e muito agressivos.

Esse fascínio pelo Japão é recente ou vem de longe?

Desde miúdo que eu queria conhecer. Inclusive, fiz uma primeira viagem ao Japão quando estava a escrever “A Desumanização”. Ainda estava com a cabeça na Islândia e na cultura islandesa, e tomei muitas notas e quase interrompi o romance para escrever um livro japonês, porque o Japão é tão apelativo, a cultura é tão apelativa que, de repente, o estar lá, me deu muitos textos e era-me quase impossível resistir. Mas como também adoro a Islândia e o livro já estava maduro e tinha escrito várias versões, já não o podia deitar fora. Era um livro demasiado importante para mim para ser deitado fora. E então o Japão acontece depois da Islândia, de uma forma quase urgente. Quando termino “A Desumanização” atiro-me imediatamente à escrita dos “Homens Imprudentemente Poéticos”, como quem está a ser esperado. Tinha a sensação de que havia gente à minha espera, uma pressão interior para me dedicar àquilo e que me agradou muito e que me compensou muito. Enfim, cada vez estou mais estranho a escrever, porque cada vez sou mais severo. É uma patologia miserável, porque estou sempre no ponto zero, na primeira página, depois de chegar à 50, à 80 e às vezes até à 100! Mas parece-me que, como um todo, se as coisas não forem espontaneamente levadas do início até ao fim, parece-me que crio um organismo impraticável. Parece que não lhe vou construir os pulmões, não vai ter fígado, rins, estômago. Parece que fica um animal tão esdrúxulo que alguma coisa vai falhar e fazer com que ele morra.

Falávamos das idiossincrasias dos japoneses…

Acho as distinções culturais, as diferenças, maravilhosas. Os japoneses têm uma filosofia espiritual que… Diria que eles têm muito mais para nos ensinar a nós do que nós temos para lhes ensinar a eles. Nós temos um mundo de medos para lhes oferecer, eles têm um mundo de coragem. São muito mais valentes. [sorriso] E desde miúdo que, para mim, me parece muito claro que as aflições dos outros são as nossas aflições, porque no fundo dependemos muito do estádio da vida em que estamos, de um aspeto puramente conjuntural, porque na estrutura todas as questões são de todas as pessoas. Sem os outros não nos ratificamos, não temos validade.

 

(Entrevista publicada no caderno Et Cetera a 20 de abril de 2018)

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