Permitam-me a provocação: infelizmente, temos muito mais em comum com a Venezuela do que apenas uma vibrante comunidade lusodescendente, agora remetida a um presente e um futuro incerto.

A experiência política e económica venezuelana encerra uma lição e uma lembrança, que seriam irónicas, não fora o seu carácter trágico: nenhuma recomposição social, nenhuma redistribuição de rendimento, se faz contra a vontade dos cidadãos e contra as ‘leis’ da economia.

Na Venezuela falta comida e combustíveis, cuidados de saúde e medicamentos, enfim, a lista poderia continuar. Mas falta também o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, como diversos observadores têm notado repetidamente, ainda que esse não seja o tema deste artigo.

Permitam-me destacar aqui em particular a falta de medicamentos e de cuidados primários de saúde. Da Venezuela chegam-nos quase diariamente relatos angustiados da falta generalizada de medicamentos, incluindo os mais básicos. Por estes dias, as farmácias e os hospitais não têm medicamentos e equipamentos, enfermeiros ou médicos. É com tristeza e preocupação que constatamos que reina o caos no país.

Hoje, a Venezuela paga, também na área da saúde, o preço de escolhas passadas que foram erradas. A opção de tabelar preços, por exemplo, foi uma delas. Tal como foi a opção de impor condições draconianas de produção e comercialização de medicamentos e de equipamentos hospitalares. Os resultados, estão à vista, num panorama geral de escassez e penúria. Ainda assim, há quem insista em nada aprender com o passado e com as desastrosas experiências de diversos regimes totalitários e autoritários.

Por cá, curiosamente, vivemos dias de esquizofrenia política e partidária. Não começou agora, é certo, mas a tendência no sentido de privilegiar uma orientação económica centralizada e autoritária agravou-se significativamente no actual ciclo político.

As farmácias, em particular, têm sido duramente castigadas por esta pulsão, por exemplo impondo condições de comercialização que empurraram os estabelecimentos para a insolvência, reduzindo as margens de comercialização muito para além do razoável, e permitindo que os medicamentos sejam exportados, para mercados livres de condicionalismos, claro está, o que tem provocado preocupantes rupturas de stocks em Portugal.

Olhando o que se está a passar, quase que se é obrigado a concluir que existe algum ressabiamento contra os profissionais e os empresários farmacêuticos que fazem serviço público em todos os concelhos do país. Esta aparente saga impede hoje em dia uma farmácia média de operar com a dignidade exigida, a qualidade esperada e um mínimo razoável de rendibilidade.

Sejamos muito claros. O que está em causa são os serviços de proximidade prestados pelas farmácias, todos os dias do ano e com profissionais qualificados. É disto que verdadeiramente estamos a falar. A diminuição do número de farmácias, ou o seu funcionamento em condições críticas, implicará que centenas de milhares de portugueses ficarão mais frágeis sem esses serviços de proximidade.

Não tem que ser assim, como é evidente, e há boas razões para que assim não seja. As farmácias, como têm demonstrado repetidamente na sua relação com os subsistemas de saúde, fornecem serviços às populações que evitam a sobrecarga dos centros de saúde – importa não esquecer, já agora, que há ainda cerca de 500 mil cidadãos sem médico de família – e das urgências hospitalares.

Acresce que as farmácias estão entre as instituições em que os portugueses mais confiam. Têm, aliás, bons motivos para isso. Ora, contratualizar e remunerar as farmácias por prestarem um serviço de proximidade que descongestiona o SNS é da mais elementar inteligência e racionalidade económica, com a vantagem de assim se prestar um melhor serviço aos cidadãos.

Não faltam, aliás, áreas em que as farmácias têm uma capacidade notória para prestar um serviço de utilidade pública. A vacinação, a venda e administração de medicamentos a doentes crónicos, oncológicos, e HIV, são alguns dos exemplos, sem ser exaustivo, de experiências de sucesso na relação das farmácias com os subsistemas de saúde, em Portugal como noutros países europeus.

Por tudo isto, urge dizer alto e bom som: as farmácias portuguesas funcionam bem e poderiam ser parceiras de excelência do SNS, fazendo com menos custo e mais qualidade aquilo que o SNS por vezes tem dificuldade em fazer.

Seguramente só a cegueira ditada pela ideologia impedirá alguns intervenientes de ver e reconhecer o óbvio ululante. Na Venezuela, entretanto, paga-se todos os dias o duro preço de opções ideológicas erradas. E por cá, que escolhas vamos fazer? É mais importante perseguir as farmácias, ou cuidar do interesse dos cidadãos?

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.