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Vítor Constâncio: Supervisão não tem por objetivo zelar pelos níveis de rentabilidade das instituições de crédito

Responsabilidade de antigo e actual governador vai ser escrutinada na nova comissão de inquérito à gestão da Caixa que prossegue esta quinta-feira os trabalhos com audição a Vítor Constâncio.
28 Março 2019, 17h44

Vítor Constâncio disse hoje na Comissão Parlamentar de Inquérito que a supervisão não tem por objetivo zelar pelos níveis de rentabilidade das instituições de crédito. O ex-Governador do Banco de Portugal foi ouvido no âmbito da CPI à Caixa Geral de Depósitos e explicava aos deputados as cinco razões pelas quais o regulador não podia fazer muito na Caixa Geral de Depósitos.

Constâncio é uma das personalidades que está a ser ouvida nesta quinta-feira, 27 de março, na nova comissão parlamentar de inquérito que foi criada para apurar as práticas de gestão da CGD no domínio da concessão de crédito desde o ano 2000, apreciar a atuação dos órgãos de administração, fiscalização e auditoria do banco, dos auditores externos, bem como dos governos e supervisores financeiros. A nova CPI foi criada após a divulgação do relatório de auditoria à gestão da CGD, entre 2000 e 2015, que conclui por perdas de 1.647 milhões de euros devido à existência de vários créditos de valores elevados, alguns dos quais concedidos pelo banco público de forma irregular e sem respeitar pareceres internos e em operações de risco.

Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, queixou-se da falta da presença de Vítor Constâncio no Parlamento “sem assumir o que fez cá” em Portugal, para depois colocar uma pergunta sobre um crédito “de que sabemos pouco”: Imosal, Imobiliária do Saldanha, é o nome da empresa – mas Vítor Constâncio desconhecia a empresa e a operação em causa.

Constâncio recordou a supervisão “não podia impedir” os negócios que foram feitos com o dinheiro fornecido pela CGD. As operações feitas com o crédito concedido eram todas elas legais, “ao contrário” do que ficou percecionado pela pergunta de Mariana Mortágua. “São os acionistas que definem a política de crédito e não o supervisor”, recordou, “não tem essa competência, por isso não pode intervir” senão quando acontece uma ilegalidade. “Isso acontece em Portugal, como em qualquer outro país europeu”, disse.

O supervisor tem exatamente as mesmas competências legais perante uma instituição pública como perante uma privada”, disse ainda.

Mortágua perguntou de seguida se Constâncio recebeu uma carta de Almerindo Marques – antigo gestor público – sobre a CGD. Apesar dos sorridos que se espalharam na sala, Constâncio não se lembra da carta. Como também não se lembra de ter reunido com o gestor, que alegadamente se queixava da política de crédito da Caixa.

Constâncio escudou-se sempre, na conversa com Mortágua, na letra da lei, para explicar que a supervisão cumpria todas as normas que lhe competiam – onde não está zelar pela rentabilidade das instituições de crédito, pelas suas políticas de crédito, pela aceitação de colaterais sobre crédito, ou qualquer outra atividade comercial. “A minha atividade principal era a política monetária”, disse o antigo líder do PS. Mariana Mortágua insistiu, e Vítor Constâncio também: “o Banco de Portugal não pode controlar a concessão de crédito, apenas pode exigir capital” para cobrir operações que corram mal. E o Banco de Portugal também “não pode punir o gestor” que toma essas decisões.

Mariana Mortágua perguntou a Constâncio se sabia da exposição da Caixa ao universo BCP e o antigo governador explicou que “a única ação possível era controlar se as provisões eram adequadas e se os níveis de capital era os certos.”

Cecília Meireles, do CDS, de algum modo secundado a sua colega do Bloco, também se queixou da falta de esclarecimento de Vítor Constâncio sobre a CGD em diversas circunstâncias. “Já percebi qual vai ser o seu padrão de resposta: não teve responsabilidade”, disse.

A deputada do CDS foi ainda mais incisiva que Mariana Mortágua, que, perante a recusa de Constâncio em avançar para lá do escudo de não conhecer tudo o que se passava no banco central, acabou por exclamar “alguma vez viu alguma coisa” do que se passava na instituição que governava. Constâncio recordou ainda que os créditos mal-parados não têm todos a ver com más-práticas, mas também da crise que se instalou em toda a Europa.

Cecília Meireles quis saber se, ao tempo de Constâncio, algum processo sobre idoneidade foi aberto. O antigo governador teceu uma explicação sobre procedimentos, que foram seguidos sobre todas as nomeações. “E houve abertura de processos que levou pessoas a tomar decisões de se afastarem, antes de serem nomeados”. De qualquer modo, “não se podem tomar decisões dessa natureza com base em presunções”. “Nunca durante o meu mandato tomei decisões que fossem contra a decisão dos serviços e do vice-Governador com o pelouro, nunca tive qualquer interferência subjetiva ou pessoal sobre essa matéria”, disse.

Francisco Bandeira (BPN) e Armando Vara (CGD, BCP) foram dois dos exemplos que Cecília Meireles quis avançar. “Francisco Bandeira tinha a idoneidade reconhecida na CGD, que se manteve quando foi para o BPN – havia uma investigação em curso, mas não havia uma conclusão, não havia matéria de direito para lhe retirar a idoneidade. Quanto a Armado Vara, também não havia fundamento suficiente para lhe retirar a idoneidade”, disse Constâncio.

Duarte Alves, do PCP, insistiu nas questões dos créditos concedidos e das garantias exigidas para acantonar esses créditos, mas Vítor Constâncio repetiu o argumentário: a sua função tinha a ver com manter a sustentabilidade do capital – não podendo o supervisor mandar parar as decisões, uma vez que não eram ilegais – e a crise varreu as instituições financeiras em toda a Europa. “Há que ter em contexto os poderes legais do supervisor”, recordou.

Duarte Alves voltou à questão da carta eventualmente enviada por Almerindo Marques – que chegou a ser presidente do Banco Fonsecas & Burnay – mas obteve a mesma resposta que Constâncio havia dado a Mariana Mortágua. “Para que é que haviam procedimentos de risco, se esses procedimentos eram meramente decorativos?”, perguntou o deputado do PCP. “Se os procedimentos não estavam a ser cumpridos, é uma falha que esse incumprimento não tenha sido reportado”, ”mas nunca, em sua presença no banco central, “nada havia que justificasse qualquer auditoria, a única coisa era garantir que a Caixa assegurava a sua solvabilidade e isso foi feito”, disse Constâncio.

Duarte Alves observou que o supervisor tinha o poder para investigar mais além e para atuar “e ao que parece [Constâncio] não cumpriu, o que fez em concreto?” “Nada me foi proposto para fazer qualquer procedimento em relação à Caixa, nada levantava suspeitas, havia operações arriscadas, mas, eram todas legais, as garantias e o seu reforço, tudo isso foi visto pela supervisão, não havia a necessidade de qualquer auditoria, estava tudo transparente”, afirmou – “foram tudo decisões legais” dos gestores do banco.

A quanto ao risco acrescido de algumas operações, ele decorre de decisões que estão sob a alçada da gestão do banco, sem que o supervisor tivesse que tomar qualquer decisão de aumento do controlo. Constâncio disse ainda que os níveis de mal-parado da Caixa à época da sua presença no banco central não eram de modo a suscitar preocupações acrescidas – dado que estava dentro dos valores percentuais normais do setor financeiro.

Como membro do conselho de governadores do BCE, Constâncio nunca teve qualquer conhecimento que a supervisão bancária (separada da gestão do BCE, apesar de a ele pertencer) tivesse especial interesse sobre a banca nacional, fora o caso do BES.

Duarte Marques, deputado do PSD, questionou Vítor Constâncio sobre se estava de algum modo incomodado pelas falhas que vieram a ser detetadas e pelas perdas que a banca veio a acumular. O antigo Governador afirmou que ilações ‘à posteriori’ são diferentes do que pode ser executado ao momento dos acontecimentos.

O deputado social-democrata repetiu o tipo de argumentos das intervenções anteriores, o que resultou no mesmo tipo de respostas da parte de Vítor Constâncio. O antigo Governador explicou novamente as regras – tanto no que tem a ver com o crédito mal-parado, como no que diz respeito à concessão de crédito, mas tudo isso tem a ver, do ponto de vista do banco central, com as exigências de capital.

Nas mãos do supervisor havia a hipótese, ao acompanhar os créditos dos bancos, de pedir o reforço dos colaterais quando os créditos eram de elevado montante – o que foi feito, sem que Constâncio alguma vez tivesse tido notícia de que esses reforços tivessem sido incumpridos.

Duarte Marques contrapôs que o Banco de Portugal devia ter percebido que havia créditos concedidos contra o parecer dos conselhos de crédito – mas Constâncio recordou que está nas mãos da gestão fazer isso, além de que “não foi reportado ao Banco de Portugal, nunca me foi reportado que essa situação passou a ser regras”, como afirmava Duarte Marques.

O deputado do PSD voltou à questão de Almerindo Marques, antigo gestor da CGD, com Duarte Marques a insistir que “não é aceitável” que o antigo Governador do Banco de Portugal não se lembre da carta – com cópia enviada ao Presidente da República e ao ministro das Finanças – e de um encontro com ele. Constâncio foi evasivo, como anteriormente.

Duarte Marques versou depois a questão das idoneidades, que mereceu os mesmos comentários de Vítor Constâncio. À mesa regressou Armando Vara – afastado pelo Presidente da República Jorge Sampaio, que depois foi colocado na vice-presidência da CGD. “Não tive nenhum conhecimento direto dessa ação do Presidente”, e as questões de idoneidade não podem ser dirimidas com notícias de jornal.

Escudando-se na legalidade, Constâncio afirmou que, por exemplo, a ida da administração da Caixa para o BCP não pode, a essa luz, merecer-lhe qualquer comentário. “Uma farsa”, diz Duarte Marques: “banqueiros e reguladores estão em conluio” para fazer belos normativos, que todos sabem que não são para cumprir.

Carlos Ferreira, do PS, pediu a Vítor Constâncio que indicasse quem são os responsáveis (os nomes) que, abaixo da sua função, podem ser inquiridos sobre má análise de indícios chegados ao Banco de Portugal – que por certo o Governador não tinha de ter conhecimento. “Os serviços do banco faziam o seguimento, o vice-governador encarregado da supervisão tinham conhecimentos dos relatórios de inspeção”, disse Constâncio.

Carlos Ferreira elencou uma série de exemplos de incumprimentos ou insuficiências detetadas, a que Constâncio respondeu que “estou certo de que os procedimentos do Banco de Portugal foram cumpridos”. Genericamente, Constâncio afirmou que todos os exemplos elencados por Carlos Ferreira “são exemplo de que a inspeção do Banco de Portugal funcionava; certamente houve alguma atuação do supervisor”. Sem que, em concreto, Vítor Constâncio possa saber o que se passou – até porque “este tipo de anomalias não chegavam à administração do Banco de Portugal”, eram resolvidas antes de lá chegarem. De qualquer modo, “o rasto dessa atuação existe no Banco de Portugal”, referiu ainda.

Carlos Ferreira perguntou a Constâncio se a supervisão tivesse sido mais atuantes, as perdas do banco poderiam ter sido menores. “Impossível colocar as coisas assim”, disse.

Na segunda volta da audição, Mariana Mortágua considerou que, se Constâncio não identificou as falhas de supervisão, não devia ter aceitado o cargo de Governador. “Ter aqui Vítor Constâncio ou qualquer outra pessoa era a mesma coisa, não nos trouxe nada a mais”. E perguntou em concreto se chamou dois administradores do BCP para lhes retirar a idoneidade, em 27 dezembro de 2007”. “Não tenho ideia de ter dito isso a dois administradores do BCP”, disse Constâncio – mas houve atuação e condenações do Banco de Portugal e da CMVM, como a história posterior o prova.

Filipe Pinhal e Christopher de Beck eram os dois administradores. “Os processos existiram, mas não podia ter procedido como diz”, afirmou. “Impossível admitir que eu me possa lembrar de todas as conversas que tive em 2007. Não me lembro e é normal que não me lembre”. “Pergunto porque talvez os tenha chamado para os dissuadir de fazerem parte de uma lista para a administração do BCP”, reforçou Mortágua. Constâncio admitiu que poderia ter tido a conversa para os avisar da abertura dos processos, “mas não tive qualquer influência sobre o processo” da lista referida. “Não tive com eles nenhuma reunião com o objetivo de os afastar da lista do BCP”.

Mariana Mortágua questionou se terá conversado com Armando Vara e Santos Ferreira – que transitaram da Caixa para o BCP. “Não falei com ninguém do BCP sobre nomes que estariam a entrar ou a sair do banco”.

Cecília Meireles, do CDS, afirmou querer entender o que fez Constâncio “genericamente” para saber se a banca estava a ser bem seguida. O antigo Governador respondeu que sempre cumpriu a lei e os procedimentos que estavam previstos. Mas a deputada afirmou que “é difícil de acreditar” que não tivesse tido notícia de incumprimentos na Caixa, como também no BPN e mesmo no BES.

Constâncio admirou-se com a referência ao BES. “Isso não foi no meu tempo”, afirmou Constâncio, o que levou Cecília Meireles a afirmar “eu não afirmaria isso”. A deputada do CDS passou depois para o caso da La Seda – outro desastre de crédito da Caixa – mas Constâncio não teve conhecimento concreto da questão, mas “admito que a supervisão tenha acompanhado, mas não chegou ao meu conhecimento”.

Duarte Alves, do PCP, voltou à carga com os créditos concedidos pela Caixa para a compra de ações do BCP, para concluir que o sistema é uma troca de ‘confianças’ entre gestores da banca, reguladores, supervisores e auditores. Constâncio voltou a escudar-se nas funções do supervisor decorrentes da lei, repetindo o que já antes tinha dito.

Conceição Ruão, do PSD, ofereceu entretanto a Vitor Constâncio um exemplar da auditoria da EY à Caixa, o que suscitou um momento de algum frenesim, dado que não havia a garantia de que o documento fosse público. Posto isto, quis saber quais os critérios que presidiam à concessão de crédito por parte da CGD – o que ‘atirou’ Constâncio’ para resposta idêntica à que já tinha afirmado “não tinha nada a ver com a supervisão”.

Conceição Ruão quis perguntar sobre os créditos da CGD à aquisição de ações do BCP. “Eu não faria essas operações, mas isso é irrelevante”, afirmou – o que interessa é que “eram legais”.

Finalmente, João Paulo Correia, do PS, quis falar da “operação ruinosa da Caixa em Espanha”. “Quem era o supervisor, Portugal ou Espanha?” “Era consolidada”, referiu Constâncio, para se referir ao banco da CGD mas de direito espanhol aberto em Espanha. Aquilo que se viria a revelar um desastre, a operação em Espanha, nunca, do ponto de vista da supervisão, mereceu qualquer reparo, dado que tudo era feito com transparência (no sentido de ser conhecido) e ficava fora da alçada do Banco de Portugal.

No rescaldo, todos os grupos parlamentares tenderam a convergir na notação de que a supervisão bancária é “uma inutilidade”.

(em atualização)

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