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Coreia do Norte: uma viagem ao país do silêncio

André Jacques, administrador da Porto Business School, já esteve em mais de 70 países. Um deles, há um ano, foi a Coreia do Norte. Contra todas as expectativas, “é mais fácil ir lá que aos Estados Unidos ou a Israel”. Uma viagem que não esquecerá.
28 Outubro 2017, 10h30

Há pouco mais de um ano, William (que não se chama William), um norte-americano com uns 30 anos, decidiu surpreender a jovem amiga com quem viajava de férias e pediu-a em casamento. Segundo parece, para estas coisas – quando a estratégia é não usar o método tradicional de os pais do noivo irem a casa dos pais da noiva – é suposto usar-se um sítio especial, que fique no lado da memória que sobrevive a tudo, até ao amor se for caso disso. Foi o que William fez: pediu a noiva em casamento em plena Torre da Ideologia Juche (70 andares, 170 metros de altura) – que quer dizer qualquer coisa como ‘autosuficiência’. A cidade: Pyongyang, a mais distante, a mais inacessível, a mais obscura e a mais impossível de todas as capitais do mundo.

Ou talvez não: André Jacques, membro da direção da Porto Business School (PBS) – um viajante empedernido que já leva no currículo viagens a mais de 70 países – estava na Torre da Ideologia Juche quando William selou o seu futuro, eterno enquanto durar (como dizia um poeta brasileiro que viajava para todo o lado sem sair dos bares de Copacabana). Com ele, estavam cerca de trinta pessoas, entre elas o ex-jugoslavo que o desafiara para a viagem, outro casal norte-americano (ela jornalista aposentada), uma israelita de 80 anos, uma jovem de Madagáscar que não sabia ao certo onde estava, e um sul-coreano devidamente munido de um passaporte canadiano – única forma de entrar no vizinho a norte do seu próprio país.

“Acho que é mais fácil entrar na Coreia do Norte que nos Estados Unidos ou em Israel”, diz, para surpresa dos muitos que hão de achar que aterrar em Pyongyang é um empreendimento próximo do impossível. André Jacques só teve de enviar um scâner do passaporte e da fotografia para a agência de viagens e ficar à espera do briefing que antecederia a viagem. Não, por certo, uma agência qualquer: há duas, a Koryo Tours e a Young Pioneers Tours, ambas sediadas na China, ambas detidas por empresários britânicos e ambas à distância de um clique no Google, que conseguiram acordos com agências de viagens estatais norte-coreanas e organizam visitas ao país controlado pela única dinastia comunista alguma vez registada como tal nos compêndios de história contemporânea.

A comitiva juntou-se em Pequim antes de entrar no comboio que os iria levar a Pyongyang e que, mal cruza a extensa fronteira entre os dois países, não volta a parar até chegar à capital onde, algures – ninguém sabe muito bem onde – vive o ditador Kim Jong-un, filho e neto de ditadores, que tem à sua mercê, possivelmente logo ali na sala de estar, um interruptor vermelho que aciona mísseis balísticos com capacidade nuclear reconhecida e autonomia comprovadamente enorme.

Nesse briefing, as primeiras advertências: era absolutamente imprescindível que os viajantes se abstivessem de introduzir no país qualquer material religioso – fosse de que confissão fosse – pornografia ou artigos, textos, e-mails, SMS (os telemóveis haverão de ser copiosamente vasculhados à passagem da fronteira) ou o que mais alguém pudesse nomear, dirigindo-se jocosa ou injuriosamente a Kim Jong-un, o líder perfeito, único entre iguais. Ou tão único como o pai e o pai do pai: era também expressamente obrigatório o mais profundo respeito por tudo o que tem a ver, e é muito, com a ideologia Juche, aparentemente criada por Kim Il-sung na sua qualidade de profeta – “não é muito diferente de entrar no Vaticano”. Fazer olhinhos, como se diz por aqui, a norte-coreanos e norte-coreanas e fotografar militares ou instalações militares também podia ser pouco saudável enquanto se viaja no interior da República Popular Democrática da Coreia. Um nome muito comprido: “chamar-lhe Coreia do Norte é uma ofensa” para os súbditos de Kim Jong-un, reza a ideologia Juche, também conhecida por Kimilsunismo, desconhecida em Portugal.

Será? Nem pensar: num dos museus que visitou, André Jacques ficou boquiaberto perante uma parede cheia de placas que comemoravam a proliferação internacionalista do Kimilsunismo, com elevado destaque para as células de Queluz, Lisboa, Amadora e Estoril, que, entre 1979 e 1981, se dedicavam apuradamente, presume-se, ao estudo dessa ciência, exata para os norte-coreanos, possivelmente dogmática para todos os outros. Do Comité Português de Estudo do Kimilsunismo não há por cá rasto detetável (nem mesmo no que se pode detetar nos arquivos de Pacheco Pereira), mas por maioria de razão havia de estar ligado a algum grupo maoista, dos milhentos que proliferaram em território lusitano nas décadas de 60 e 70 do século passado.

Da cidade em geral, André Jacques guarda a sensação do silêncio: os carros contam-se pelas dezenas nos dias de muito movimento, as bicicletas tendem a não fazer barulhos e os norte-coreanos não falam: seguem metidos consigo próprios encarando o chão ou olhando em frente – é quase o mesmo horizonte sem deslumbramento. “Há silêncio por toda a parte; até no metro: as pessoas entram e saem das composições sem falarem umas com as outras, ninguém diz nada”, possivelmente para não interferirem com as marchas militares que emanam dos altifalantes a funcionar nas catacumbas “muito, muito profundas” do transporte público.

À superfície reina o mesmo silêncio: “quase não há comércio de rua nem restaurantes, praticamente não há onde gastar dinheiro”, o consumo parece não fazer parte das prioridades do Juche, que claramente tem uma: “os norte-coreanos continuam a achar que a Coreia do Sul está ocupada por tropas dos Estados Unidos e é seu dever libertá-la”, diz André Jacques.

É essa a última fronteira: o paralelo 38, a terra de ninguém onde já várias dezenas de pessoas perderam a vida em escaramuças que anunciaram sempre, precocemente até hoje, uma guerra que, dizem alguns, um dia há de acontecer. Mas poderá visitar-se desde o lado norte? “Claro que sim” – e para lá seguiu a comitiva em camioneta, numa alegre viagem que meteu risos, anedotas e solfejos: “as guias cantaram o hino do país em coreano e em inglês, eu lá fui cantando o nosso e os americanos entoaram ‘The Star-Spangled Banner’” – o paralelo 38 logo ali, vá lá saber-se por que pautas o mundo se vai encontrando em lugares improváveis, mesmo nas barbas do polícia de serviço. “Não era um guia, todos pensámos que seria da polícia, era simpático, falava inglês, acompanhava-nos para todo o lado e acabou por entrar nas brincadeiras do grupo”, ao menos por uma vez em paz.

O paralelo 38 é o que se está à espera que seja: uma cancela. Do lado de lá, a Coreia do Sul e por trás dela todo o extenso ocidente, o inimigo. Ou antes: do lado de lá, os irmãos, sitiados por dentro, à espera da manhã que liberta, que canta e que, antes disso, há-de trovejar em canhões, estilhaços e rajadas. Mas isso agora não interessa nada: o cortejo seguiu em regime de visita para a sala onde em 1953 as partes assinaram a paz, deambulou por ali entre o pó, um livro de capa vermelha, ou o que resta dela, e os polícias, que teimam em sorrir pouco por baixo daqueles chapéus que parecem terrinas de levar a sopa à mesa viradas de pernas para o ar.

E depois o regresso, novamente ao hotel “numa ilha no meio do rio, talvez porque é mais fácil de controlar”, e finalmente o avião, de fabrico russo, o único que naquele dia se faria à pista, rumo a Pequim, deixando para trás um país mergulhado no silêncio.

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