[weglot_switcher]

Correia de Campos: “Um ministro tem mais poder do que julga”

O ex-ministro da Saúde de José Sócrates e de António Guterres é o atual presidente do Conselho Económico e Social (CES). Nesta entrevista de vida, Correia de Campos fala sobre a concertação social, a sua infância em Torredeita, a carreira profissional e a “geringonça”.
6 Abril 2017, 10h00

Foi ministro da Saúde duas vezes, secretário de Estado, deputado, eurodeputado. Como surgiu a presidência do CES?
Foi um convite do grupo parlamentar do PS para ser candidato. É uma eleição no Parlamento, por maioria de dois terços. A legitimidade da presidência é de origem parlamentar, não é uma nomeação do Governo. Neste caso, dois grupos parlamentares acordaram entre si.

Ficou surpreendido, uma vez que esteve sempre mais ligado à Saúde?
Se olharmos para os anteriores presidentes do CES, o professor Bruto da Costa foi ministro dos Assuntos Sociais, o doutor Luís Filipe Pereira foi ministro da Saúde, o doutor José Silva Peneda foi ministro do Trabalho. O doutor Silva Lopes foi – mais que ministro – uma grande figura da vida e do conhecimento económico nacional. Portanto, está um pouco dentro dos genes do CES recrutar pessoas deste meio.

Não foi eleito à primeira. Pode explicar o que aconteceu?
Não fui eleito à primeira porque não tive votos. É um comportamento natural em democracia. Evidentemente teria gostado de ter sido eleito à primeira mas não era por esse facto que me deveria de afastar. Isso seria uma descrença na democracia. E portanto, sem pestanejar, voltei a aceitar a candidatura. À terceira é que seria mais difícil [risos].

Tomou posse há cerca de cinco meses. Está presente em todas as reuniões da concertação social?
Procuro estar presente. A concertação social é apenas um dos aspetos do CES, é aquele que é mais visível, mais mediático. O público conhece mal o CES e muitas vezes confundem-no com a Comissão Permanente de Concertação Social. Mas uma das mais importantes funções do CES é de aconselhar quem lhe peça conselho. Muitas vezes damos pareceres avulso ao Parlamento, é uma obrigação cívica. Depois temos os pareceres obrigatórios, que estão na lei, como as Grandes Opções do Plano ou o Orçamento do Estado. E temos muitas outras atividades que realizamos, debates onde intervêm os parceiros sociais.
Que balanço faz destes cinco meses?
É um balanço muito positivo, até ultrapassou as minhas expetativas. Eu estava convencido que isto aqui era mais trabalhar para cumprir formalidades ou discussões naturalmente obrigatórias, e não é. Fiquei convencido de que há genuinamente vontade de os parceiros contribuírem. Outra coisa é que os parceiros dão-se bem, já se conhecem, tratam-se pelo primeiro nome.

Já houve reuniões acesas?
Eu ainda não cheguei às reuniões acesas, é possível que haja e devem ter havido no passado, nomeadamente no tempo da troika. Mas não eram acesas entre si. Eram estranhamente muito coincidentes nos pontos de vista, o que surpreendia o grupo de estrangeiros que não percebia como é que confederações empresariais e sindicais estavam muitas vezes de acordo e contra o próprio Governo. Mas não posso falar sobre esses tempos porque não os vivi e não tenho uma documentação exaustiva sobre isso.

Há quem diga que a concertação social está a perder importância com esta solução governativa, ou seja, que as propostas que chegam já vêm fechadas do Parlamento.
Não, não são fechadas. Mesmo na do salário mínimo, houve negociação na concertação e uma negociação longa, difícil.

Mas a margem está mais limitada?
Sim, isso é exato. Mas repare o que se passou este ano: a primeira proposta que era usar a Taxa Social Única para contornar o salário mínimo não foi aceite na Assembleia. Essa solução voltou à concertação social e avançou-se com outra.

Noutras matérias, nomeadamente alterações à lei laboral, não há risco de os acordos da concertação chegarem ao Parlamento e chumbarem?
Sim, haverá um risco. E, se isso acontecer, voltam à concertação social. Mas isso não diminui em nada a concertação. O Parlamento pode sempre sobrepor-se. Agora, ao fazê-lo, sabe que está, de certa forma, a destruir um valor cultural. A posição de rejeição do último acordo [sobre o salário mínimo] não sei se terá tido um ganho de popularidade entre aqueles que a defenderam.

Refere-se ao PSD?
Qualquer dos partidos que votaram contra.

Quais são os próximos temas da concertação? Está prevista a lei laboral?
Não há pedidos de alteração à lei laboral por parte das confederações empresariais. Há alguma pressão da CGTP à qual o Governo tem respondido que não está no seu programa político, pura e simplesmente. Mas, pelo contrário, há um imenso espaço de debate sobre salário mínimo, segmentação e negociação coletiva. Não me parece que a lei laboral venha a estar na agenda da concertação. Não há propostas. Não sou especialista na matéria mas em tempos falei com um e perguntei-lhe se havia alguma razão para que a economia não arranque mais depressa por causa da legislação laboral. E ele disse “absolutamente nenhuma”.

E na sua opinião? É necessário reverter algumas medidas do tempo da troika?
Se os próprios interessados não o pedem, quem sou eu para o fazer? Não me chegam ecos de que isso seja essencial. O emprego está a crescer, os salários, devagarinho, mas estão a crescer, o consumo a aumentar, o crescimento económico começou a tocar os 2%.

Por outro lado, defendeu há uns tempos que os cortes nas horas extraordinárias dos médicos deviam ser abolidos.
Essa é uma prioridade para por os serviços de saúde a funcionar com qualidade.

Só na Saúde?
Esse comentário foi feito no âmbito da saúde. O que se passa nos outros setores não tem, nem por sombras, o impacto que os cortes nas horas extraordinárias têm na saúde.

Quais eram as expetativas quando foi anunciada a mudança de Governo e qual é o balanço que faz?
As expetativas, talvez de 80% dos portugueses, eram de que a solução de Governo podia cair em meio ano ou coisa do género. Eu não estava longe desses 80%. É uma novidade em Portugal porque só tínhamos tido coligações da direita mais vezes no poder e a coligação do PS com o CDS, que foi efémera. Portanto, esta foi uma nova coligação que tirou do limbo político cerca de 20% dos votos. É este o caracter inovador.

Mas a solução governativa agrada-lhe?
A solução governativa funciona e tem funcionado além das expetativas. Não interessa aqui o aspeto subjetivo, gostar ou não gostar.

A designação do Governo por “geringonça” deveria ser rebatizada?
Não. As pessoas até já começaram a tratar o nome com algum carinho. A habituação a essa palavra entrou no quotidiano. A “geringonça” tomou até um tom de tolerância, de carinho e alguma aceitação política.

Trabalhou em várias instituições europeias. Como comenta as declarações de Jeroen Dijsselbloem, que acusou o Sul da Europa de desperdício de dinheiro em “copos e mulheres”?
São declarações de uma enorme infelicidade. A declaração é uma coisa. Outra coisa é o que está por trás dessa declaração. Se fosse um momento de infelicidade apenas, nós até poderíamos tolerar. Mas o que a declaração traz à superfície é que há um enorme preconceito xenófobo, racial, cultural, que é inaceitável para um europeu. É impossível que a Europa tenha, num lugar de tanta importância como é a presidência do Eurogrupo, uma pessoa com preconceitos que se revelam com frases destas. É absolutamente inaceitável.

É natural de Torredeita, concelho de Viseu. Como foi a sua infância?
Foi uma infância muito feliz, vivida na aldeia até aos seis anos, na altura sem telefone, eletricidade ou água corrente. Eu vivi toda essa transição. Mais tarde passei para a cidade porque os meus pais eram professores do ensino primário, tinham cinco filhos e precisavam de os educar. Durante esses primeiros anos assisti à vinda do telefone, à inauguração da luz elétrica, e à criação de um posto da Guarda Nacional Republicana. Só mais tarde, já eu era adulto, foi possível criar sistemas de abastecimento de água ao domicílio e sistemas de abastecimento básico. Apesar de a aldeia estar a 10 quilómetros de Viseu não tinha esses recursos. A maior parte da minha geração saiu da aldeia.

Ainda hoje lá vai com frequência?
Não tenho bens ao luar, como se costuma dizer. Vou lá porque presido ao conselho de amigos de uma Fundação (Joaquim dos Santos), e que começou com uma creche para crianças do pré-escolar, tem um posto médico, um rancho foclórico, um eco museu rural. E hoje tem um lar da terceira idade e um centro de dia. É uma instituição por quem tenho um carinho muito especial e que representa o exemplo de um homem, que ficou lá, contemporâneo meu, inspetor Arcides Batista Simões, uma pessoa de grande distinção.

Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Estudou em França e nos Estados Unidos. Nunca lhe passou pela cabeça ser médico?
Não. Estou rodeado de médicos. Tinha três cunhados médicos e uma irmã médica. Nem mesmo em miúdo.

O que destaca das experiências na Universidade John Hopkins, nos EUA e em Rennes, França?
Estive em França no ano a seguir ao Maio de 68. Foi muito interessante porque apanhei os escombros da crise, que levou à saída do presidente De Gaulle. Foi uma vivência muito interessante ver como os franceses se adaptaram ao Maio de 68, às exigências, reivindicações sociais, laborais, etc. Nos Estados Unidos tive a sorte de chegar em 1976, a seguir à crise do Watergate. Fiquei com imensa admiração pelos americanos.

Teve diversos cargos governativos. Uns durararam semanas, outros meses ou anos. Como avalia o seu percurso em cargos governativos?
Foram sempre experiências muito positivas. O que existe de excecional em qualquer cargo governativo é o nível em que o observador se coloca. Um secretário de Estado ou um ministro passa para um nível de observação que não é o do comum cidadão. É outro. Olha a realidade que o rodeia de uma forma muito diferente da que via como cidadão. É por isso que é tão importante aos partidos que estão historicamente afastados do poder, como o BE ou o PCP, estarem agora mais próximos. Eu acho que um ministro tem sempre muito mais poder do que aquele que julga ter. A percepção do que eu estou aqui a dizer é diferente conforme as pessoas se situem à direita ou à esquerda. As pessoas à esquerda têm pudor de exercer o poder, a não ser os ditadores de esquerda, que já passaram. As pessoas à direita têm muito mais a percepção de que sabem como usar o poder e usam-no. Isto é a minha apreciação e que pode explicar de certa forma um pouco do meu comportamento. Eu nunca pratiquei arbitrariedades, nunca fiz iniquidades – ou as que fiz foram o mínimo possível e não havia alternativa.

Tem muitos amigos na política?
Sim. E em todos os partidos.

Como é a relação com José Sócrates?
Já não estou com ele há uns tempos. Mas fui visitá-lo na prisão três vezes e é uma relação boa. Continuo a pensar, até prova em contrário, que ele está inocente.

Como foi a vida no Parlamento Europeu e o momento mais marcante?
Daquilo que eu tirei mais proveito foi a negociação. Porque eu era um pouco iluminado, convencido de que tinha estudado cada solução técnica e, portanto, lutava pela minha solução. No Parlamento Europeu aprendi que, mesmo as melhores soluções, podem não ser ótimas. Muitas vezes não há um ótimo na política. Há um ‘second best’. Portanto aprendi a negociar com toda a gente, com todos os partidos à direita e à esquerda, a compor as leis e as posições, de forma a poder recolher o melhor de todos.

Isso até acaba por ser bom para as suas atuais funções.
Claro. Dá-me uma outra compreensão das posições dos parceiros sociais.

 

[Notícia publicada na edição impressa de 31 de março]

Copyright © Jornal Económico. Todos os direitos reservados.