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Memória coletiva: que lugar tem o passado autoritário em Portugal?

Frequência do tema no debate e a forma como é ativado politicamente permitem avaliar a construção da memória histórica de um povo. A partir desta perspetiva e tendo o seu novo livro como pano de fundo, em entrevista ao JE, Filipa Raimundo traça uma rota sobre a relação da democracia portuguesa com o legado do Estado Novo.
6 Outubro 2018, 18h00

O tema faz parte dos programas de educação escolar, é frequentemente escrutinado em programas televisivos e não há conversa de café, na qual cada participante, não tenha uma opinião formada sobre o tema. O Estado Novo é um tópico presente e discutido na sociedade portuguesa, mas o que é que isto diz sobre a forma como o país lida com o seu passado autoritário?

É a esta questão que a investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), Filipa Raimundo, procura dar resposta, no seu mais recente livro Ditadura e democracia: legados da memória, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Ao longo de 100 páginas, Filipa Raimundo traça um retrato dos elementos que têm contribuído para a construção da memória histórica do período entre 1933 e 1974 – o Estado Novo. Para desbravar a questão, a investigadora especializada em legados do autoritarismo, democratizações e qualidade da democracia, começa por identificar dois acontecimentos que considera sintomáticos das fraturas que têm surgido na memória colectiva. O primeiro é António de Oliveira Salazar ter sido eleito num concurso de televisão “o maior português de sempre” e o segundo a polémica sobre a construção de um museu em Santa Comba Dão sobre o Estado Novo ou a sua figura central. A autora sublinha que ambos os exemplos “centrados na figura de Salazar, o símbolo máximo do Estado Novo”, demonstram como “o debate público de maneira pontual” tem estado presente ao longo da democracia portuguesa.

Em entrevista ao Jornal Económico, questionada sobre de que forma é construída a memória histórica de um povo, Filipa Raimundo explica que “enquanto lembramos e celebramos alguns dos episódios, há outros que desaparecem dessa memorialização, dessa ritualização, dessa celebração. A memória colectiva remete para esta ideia de que há episódios, há narrativas, há contextos que são trazidos de volta, com alguma regularidade e que ajudam a compor esta identidade de uma comunidade política”.

“O livro trata sobre a forma como a democracia portuguesa lida com o seu passado autoritário, mas começa com um argumento de que algumas das dimensões dessa forma como se lida e lidou com o passado autoritário estão de alguma forma ausentes da memória colectiva.

Na génese, o que um povo lembra ou esquece sobre o seu passado, “diz muito sobre si, diz muito sobre que democracia ou que regime ou comunidade é que somos, em que nos transformámos”, acrescenta.

Politização mas não polarização do debate

Neste caso concreto, o que é relembrado e esquecido revela também e sobretudo a politização do tema. Filipa Raimundo identifica, ainda assim, que esta politização não significa uma polarização do mesmo.

“Estes temas foram e são actualmente politizados no sentido em que se desenvolveram posições distintas sobre como é que devemos lidar com esse passado. Atores políticos, à esquerda e à direita, têm tendencialmente posições distintas sobre esta questão e elas são politicamente activadas em contextos onde isso parece fazer sentido”, explica. O que é que esta baixa polarização permite extrapolar? “Que apesar de tudo e, nomeadamente no contexto da transição, não havia posições muito extremadas sobre esta questão. Por exemplo, no que toca ao ajuste de contas com o passado, alguns desses aspectos, tiveram um forte apoio e grande incentivo por parte de quem achava que deveria haver um ajuste de contas com o passado, mas menos intenso da parte de quem achava que não deveria haver este ajuste de contas”.

Ainda assim, há um outro fator importante que poderá explicar este cenário. “A polarização não está tão presente porque, eventualmente no contexto da transição, é inegável que houve um enviesamento do espetro político à esquerda. Isso fazia com que atores políticos que eram de direita não se quisessem assumir como tal”, esclarece, acrescentando que “limitou a polarização do tema, que esses actores de direita não se quisessem associar ao regime anterior, preferindo não se posicionar muito abertamente contra este tipo de medidas”.

A influência do tipo de transição democrática em Portugal é também importante nesta leitura. “Existe uma diferença substancial entre as transições à democracia que ocorrem por ruptura com o regime anterior e aquelas que ocorrem por negociação”, disse, identificando a grande dicotomia “entre as transições que se fazem por ruptura, onde não há hipótese da elite política do autoritarismo em participar ativamente na construção da democracia, e aquelas que se fazem nas negociações, onde há uma espécie de um consenso”.

“O caso português é o caso da ruptura e o caso da nossa vizinha Espanha ilustra o caso oposto, que é o caso da negociação. Perante a morte de Franco, surge a hipótese de iniciar um processo de transição, que é feito pelas elites políticas. As elites do franquismo e as elites pró-democratizadoras”, sublinha, recordando que é um processo que se irá aplicar também a alguns países da Europa de Leste e da América Latina. “Portugal enquadra-se num padrão que é talvez menos crítico, que acontece também na Grécia quando os militares que governam o país são derrotados na guerra com a Turquia, acontece na Argentina quando há a deslegitimação dos militares com a derrota nas Malvinas. A transição negociada é mais frequente”, acrescenta.

Ajuste de contas com o passado?

As alterações governamentais têm alguma influência na narrativa apresentada ou a abordagem ao tema tende a ser linear pelas elites políticas? “Não está neste livro, mas o que se verifica é que não existe grande controvérsia em torno do passado em si, não gera grandes visões distintas”, defende, identificando a transição e todos estes aspectos de ajustes de contas como os principais elementos da discussão. “Sistematicamente, mesmo os debates que se iniciam sobre o Estado Novo terminam a discutir a transição para a democracia e a forma como se fez esta mudança de regime”, salienta.

No livro é ainda identificada a percepção popular sobre o “ajuste de contas com o passado”. Assim, Filipa Raimundo destaca que 95% das 131 pessoas diretamente envolvidas neste período inquiridas pela investigadora, consideraram que não foi feita justiça relativamente a perseguições políticas e ideológicas. “É uma amostra não representativa”, salienta, identificando a dificuldade em criar uma amostra representativa, “onde as pessoas procuradas foram ex-membros da oposição ou resistência ao Estado Novo” .

“Foi muito interessante perceber que entre pessoas, que em princípio estão mais informadas sobre aquilo que se fez, a visão predominante é de que não foi feita justiça”, explica.

“O facto de este ajuste de contas ter sido feito à margem daquilo que são os princípios de um Estado de direito democrático, num contexto de radicalização política e de transição de tipo revolucionário, de a lei que incriminou os funcionários da polícia política ser uma lei retroativa, do facto de ter havido prisões arbitrárias, pode justificar que não seja um processo muito celebrado”, disse.

Até porque “numa democracia consolidada, celebrar métodos que não estão exatamente de acordo com esses princípios, independentemente do objectivo que pretendiam atingir, pode ser uma explicação”, acrescenta.

A percepção é um pouco transversal a toda a sociedade, no entanto, “apesar disso, mais do que uma visão de que não foi feita justiça, não há ideia nenhuma especial do que é que se fez”.

“Este livro tem também esse objetivo de fornecer os dados sobre o que foi feito que desconhecem”, remata.

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