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“O Euro digital será definitivamente um marco na revolução monetária deste lado do mundo”, diz especialista

O professor universitário Paulo Cardoso do Amaral considera que a estratégia a adoptar pelo Banco Central Europeu para o Euro Digital “vai ser crítica e não isenta de riscos” e defende que com criptografia a privacidade dos utilizadores ficará assegurada.
  • Wolfgang Rattay/Reuters
12 Janeiro 2021, 08h15

O Banco Central Europeu (BCE) e os bancos centrais da zona euro estão a avaliar os riscos e os benefícios do euro digital. Para tal, a instituição presidida por Christine Lagarde lançou uma consulta pública sobre a matéria, que termina esta terça-feira. Ao Jornal Económico, o professor universitário Paulo Cardoso do Amaral, especialista no tema, diz que “mais do que um problema técnico, o Euro digital carece de uma estratégia”, defendendo que “se bem utilizado” poderá ser “uma oportunidade sem paralelo para a criação de valor económico”. O docente da Católica- Lisbon, onde coordenada o Executive Master in Management com especialização em inovação digital, antecipa que a China está mais adiantada no processo do que a União Europeia.

Termina nesta terça-feira, dia 12 de janeiro, a consulta pública do BCE sobre o euro digital. É esperado que ainda em meados deste ano, a instituição presidida por Christine Lagarde anuncie se este projeto será lançado ou não. Será definitivamente o marco de uma revolução monetária?
O Euro digital será definitivamente um marco na revolução monetária deste lado do mundo, com a tokenização de massa monetária do banco central numa blockchain. Mas com atraso, pois a China já está a testar o seu Yuan digital há oito meses e promete expandir a sua utilização já em abril do próximo ano. Ao contrário do que se tem dito, essa revolução não é a de um meio de pagamento, pois o acto de pagar sem recurso à moeda física já é norma há muito tempo. Aliás, a utilização de uma carteira digital, a chamada wallet, não precisaria da blockchain para se vulgarizar. Os bancos, as fintechs e até as ‘BigTech’ estão a ir nesse sentido, com ou sem blockchain, com ou sem Euro digital. A influência do Euro digital será sentida primeiro no sector financeiro devido às propriedades de auto-execução da blockchain, com conceitos novos como os smart contracts e a tokenização. O mesmo se passou antes com tecnologias como as bases de dados ou a web. O mundo mudou e agora vai voltar a mudar. A tokenização da massa monetária é importante, não tanto para os pagamentos, mas porque todo o sector financeiro assenta na gestão e manipulação de direitos e valor, e não é possível activar a auto-execução sem começar na base da pirâmide, com a moeda. Mas essa influência só virá a ser sentida com alterações na legislação e na regulação. Vai ser esse o primeiro impacto, e o mais importante.

Quando é que pensa que pode ser lançado? 
A presidente do BCE revelou recentemente numa entrevista que o lançamento do Euro digital deveria acontecer entre dois a quatro anos, mas ninguém sabe ainda em que moldes, daí a consulta pública. A estratégia a adoptar pelo BCE vai ser crítica e não isenta de riscos. Se a nova massa monetária for aberta à população sem qualquer controlo, imagine-se ver as pessoas a tirar todo o dinheiro dos bancos e um conjunto enorme de transacções fora do sistema actual. Como iriam os bancos manter o provisionamento? E as taxas de remuneração que alimentam todo o sistema? Mais do que um problema técnico, o Euro digital carece de uma estratégia, pois é uma oportunidade sem paralelo para a criação de valor económico, se bem utilizada.

Um dos primeiros passos será um estudo centrado nos requisitos do utilizador e nos prestadores de serviços de pagamento. Quais considera serem as características essenciais dos sistemas de pagamento com o lançamento do Euro digital?
Como disse, quanto aos sistemas de pagamento, já estamos bem servidos, obrigado. Pensar em substituir as SIBS deste mundo apenas eliminaria uma taxa practicamente irrelevante, muitas vezes abaixo dos 0,5% por transacção, e não é isso que vai criar valor económico. Pelo contrário, se for esse o caminho, vamos criar problemas aos bancos e ao resto das instituições financeiras, e não é isso que precisamos. O caminho é o da evolução e não o da destruição.

Quais os principais benefícios de um Euro digital?
Essencialmente legais. Legislação primeiro, regulação depois e economia como consequência. Com a regulação actual, a nova tecnologia vê-se obrigada a fazer exactamente o mesmo, sem espaço para qualquer evolução relevante. Só como alteração da lei é que se vão poder fazer sentir os verdadeiros benefícios da tecnologia distribuída, resiliente e autoexecutável. Aliás, a China já está a alterar a legislação, e lá vai ser mais fácil devido às características do seu sector financeiro e ao facto de os pagamentos já funcionarem em wallets abertas a toda a população. Na China, não vai ser, portanto, a tokenização de parte da massa monetária chinesa a criar risco aos bancos, nem grandes benefícios. As vantagens económicas virão de todos os sectores da economia na sequência das alterações à legislação e o consequente aumento de liquidez de todos os activos. A China vai lá chegar mais depressa, e também controlar melhor os riscos que a União Europeia. É bom que a União Europeia se despache.

O euro digital é também uma arma do Euro para lutar contra um eventual aumento dos meios de pagamentos digitais extra União Europeia?
Não me parece que esse risco seja assim tão significativo. Usar sistemas de pagamento extra europeus é possível recorrendo à tecnologia, mas vai sempre dar imenso trabalho ao utilizador final, e a preguiça encarrega-se do resto. Se os sistemas de pagamento na União Europeia forem simples e baratos de utilizar, o utilizador não sentirá necessidade de qualquer outro. A este respeito, o aumento de taxas no MBWay para algumas transacções foi um disparate, pois é exactamente esse tipo de medidas que podem fazer os utilizadores ir à procura de alternativas. Para o utilizador final, o pagamento tem de ser sempre sem custos, tal como com o dinheiro físico. O risco virá do refúgio noutra massa monetária, como as criptomoedas, incluindo as stablecoins. O Euro digital contribui para eliminar esse risco, se bem utilizado.

Quais os principais riscos e de que forma devem ser acautelados?
Há vários. O mais importante é garantir a estabilidade do sistema financeiro, como já referi. A evolução dos hábitos dos utilizadores também vai ser um desafio, pois nem todos estão preparados para usar wallets digitais e para se protegeram dos ataques informáticos aos seus tokens. Mas o risco mais importante vem da legislação e da regulação, pois é o que vai prescrever a evolução. Não fazer nada é ficar para trás, pois há outras geografias a avançar mais depressa, com as esperadas vantagens económicas. Aliás, vai fazer toda a diferença num mundo onde a guerra económica está ao rubro. Ainda por cima, os países da Common Law, essencialmente de influência anglo-saxónica, vão ter imensas vantagens. Na União Europeia, todos os países, excepto dois, seguem a Civil Law, e vão ter de se entender. A China também segue a Civil Law, mas não precisa de mais ninguém.
Mesmo que se atinja o consenso na União Europeia, há que legislar e regular bem. É esse o risco. Infelizmente ainda não está a acontecer grande coisa, como se pode constatar pela legislação em discussão na União Europeia desde setembro passado e por esta consulta pública sobre o Euro digital. Não sei se os legisladores e os reguladores já perceberam o papel central que vão ter na evolução das economias.

Quais as principais diferenças face a outros ativos digitais, como as bitcoin?
A diferença é simples. Enquanto a bitcoin é uma massa monetária emitida dentro do seu ecossistema e poderá ser utilizada por quem aderir, o Euro digital é emitido dentro do ecossistema económico sustentado pelo BCE. É o utilizador que decide qual o ecossistema que quer usar e, normalmente, ganha o que for mais fácil, seguro e abrangente. A outra grande diferença vem da legislação. Num estado de direito, os activos que nos rodeiam estão associados a direitos, como a propriedade e o usufruto, para além de terem valor transacionável na massa monetária do ecossistema a que pertencem. Para que esses direitos sejam exercidos com as vantajosas propriedades de auto-execução da Blockchain, a atribuição de valor tem sempre de acontecer dentro do mesmo ecossistema. Mais do que um potencial meio de pagamento, o Euro digital vem, portanto, permitir o uso de tokens que representam a massa monetária do ecossistema a que já pertencem todos os nossos activos. É aqui que entra o aumento de valor económico. Por exemplo, mesmo que não se use o Euro digital como meio de pagamento, o suporte da massa monetária em tokens pode ter uma influência positiva extraordinária na economia através da auto-execução de direitos aumentando a liquidez dos activos. Os reguladores têm andado preocupados em legislar sobre os investimentos chamados cripto activos, e fazem bem, para proteger os investidores. Mas esse não deve ser o foco. Além disso, deve ser ponderado o risco de aceitar outras massas monetárias emitidas por entidades arbitrárias como parte do ecossistema, pois isso iria retirar aos bancos centrais a sua influência reguladora da economia. É o caso do Facebook Libra. Com o Euro digital, o BCE mantém a sua influência, e ganha mecanismos adicionais de gestão da sua massa monetária, para além de abrir a oportunidade à evolução da legislação com benefícios económicos sem paralelo. Tudo isto pode ser feito mantendo inclusivamente a circulação da nova moeda exclusivamente no circuito bancário para evitar os riscos já referidos. Quer isto dizer que há um grande leque opções, e é bom que o BCE pense nisto no rescaldo da consulta pública. Tenho apenas receio que se esteja a pensar demais nos meios de pagamento, ou pior ainda, que se esteja a pensar apenas nisso, pois não é o que vai mudar o mundo.

De que forma é que poderá ser assegurada a privacidade dos utilizadores?
A privacidade é assegurada à medida do que os reguladores desejarem. A tecnologia de suporte ao Euro digital será distribuída e fará uso intenso da criptografia. Com criptografia, podemos assegurar os níveis de privacidade que quisermos. É assim tão simples. Nem o banco precisará de saber quem são os intervenientes das transacções, se o regulador assim o decidir.

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