Os analistas norte-americanos têm uma espécie de máxima que aplicam com algum excesso de leveza: os debates televisivos entre dois candidatos à presidência dos Estados Unidos não fazem ninguém vencer, mas podem fazer alguém perder. Apesar dessa leviandade, foi exatamente isso que sucedeu no debate de final de junho passado: não fez o candidato republicano, Donald Trump, ganhar, mas fez o candidato democrata, Joe Biden, perder. Desta vez, tudo leva a crer que não seja nada disso que vai acontecer, mas o recontro entre Trump e Kamala Harris – que se espera marcado por diversas escaramuças – será sempre importante. É esta noite.
A crer nos comentadores, Kamala Harris tratará de apostar em esbater o seu pendor esquerdista – que tem sido o fator que Donald Trump tem esgrimido com maior sucesso – indo usar, para isso, dois temas incontornáveis: a economia e Israel. O plano da vice-presidente para a economia é claramente demasiado ‘esquerdista’ para o gosto dos norte-americanos: quer colocar os ricos (ou os muito ricos) a pagar o desenvolvimento do estado social e legislar em torno das grandes empresas e das cotadas, isto para que não manejem Wall Street do que costuma chamar-se a economia de casino. Harris tem gasto parte das últimas semanas a aligeirar as dúvidas que o extenso documento (apresentado na convenção democrata) deixou aos norte-americanos, tendo-se mostrado sensível à acusação de que os aumentos de impostos podem colocar em perigo o relançamento dos investimentos empresariais, num momento em que a Reserva Federal está a ‘apostar todas as fichas’ na redução dos juros.
Entretanto, uma parte importante da economia norte-americanas – o seu relacionamento com a China – é basicamente omissa no plano apresentado por Kamala Harris (escuda-se em generalidades que foram bastante criticadas) e os analistas esperam que a candidata democrata venha a mostrar pensamento sobre o assunto. Para todos os efeitos, Trump deverá puxar o assunto à coação, dado que não é certo que Harris tenha as mesmas reservas que Joe Biden em relação ao Império do Meio.
Quanto a Israel, a mensagem que Harris mantém desde a convenção é a de que apoia o governo hebraico (ou qualquer governo hebraico) com o mesmo grau de incondicionalidade que Joe Biden – mas Trump tem dito que a vitória dos democratas seria o fim de Israel. É capaz de ser um bocadinho exagerado, mas o candidato republicano não terá com certeza grande dificuldade em encostar Harris ‘à parede’ num tema que é central para a generalidade dos norte-americanos. Que com certeza ainda se lembram dos ‘estragos’ causados pelo ex-presidente Barack Obama – um firme apoiante de Harris – naquilo que parecia ser, mas afinal não era, o indestrutível relacionamento entre os dois países.
Uma das maiores dúvidas em relação ao debate tem a ver com a forma como Trump se comportará. Uma parte dos republicanos tem-se mostrado desagradada com a tradicional ‘fanfarronice’ do milionário – mas os analistas sabem que esse registo é natural em Trump e que qualquer esforço de autodomínio será vão: é mais forte do que ele.
O show televisivo – pois que é disso que se trata, muito mais que de uma verdadeira sessão de esclarecimento – está a ser preparado ao pormenor. E tem regras que para o comum dos políticos europeus deve soar a um refinado disparate: os microfones serão silenciados enquanto o adversário tiver a palavra (Harris não gostou) e não serão permitidas notas escritas, as tradicionais ‘cábulas’. Também não haverá público ao vivo e lá estará um relógio a contar os minutos que cada candidato gasta – informou a anfitriã, a ABC News – que quer os candidatos atrás de um púlpito e não lhes permitirá declarações de abertura ou o recurso a suportes do discurso (tipo a exibição de quadros de estatísticas). As equipas de campanha não poderão falar com os candidatos em nenhuma altura do encontro entre os dois.
A arena estará disponível durante 90 minutos e terá dois intervalos comerciais. Donald Trump venceu o sorteio para escolher a ordem das declarações, tendo optado por ficar com a declaração de encerramento, o que é sempre uma grande vantagem para o republicano – que com certeza tratará de usar este tempo para ser o mais desagradável possível com Harris, que já não terá como defender-se.
Para já, este é o único debate agendado entre os dois candidatos – e decorrerá no National Constitution Center, em Filadélfia, com início marcado para as 21h locais, duas da manhã em Lisboa. Trump propôs três debates: a 4 de setembro na Fox News, 10 de setembro na ABC e 25 de setembro na NBC News. Mas os democratas apenas aceitaram o inicialmente acordado ainda no ‘tempo’ de Joe Biden, o que levou alguns comentadores a duvidarem dos ‘skills’ de Harris para este tipo de reecontros com Trump. Mais ‘sangue’, só a 1 de outubro em Nova Iorque, quando se der o debate entre candidatos à vice-presidência: o governador de Minnesota, o democrata Tim Walz, e o senador de Ohio, o republicano JD Vance. Mas isso já será uma espécie de ‘segunda divisão’.
A agência Lusa fez um histórico dos debates das campanhas presidenciais nos Estados Unidos, que permite estabelecer o padrão que impera do lado de lá do Oceano Atlântico.
John F. Kennedy contra Richard Nixon (1960)
Foi o primeiro debate presidencial televisionado da história norte-americana e evidenciou também o poder da imagem, com o vice-presidente republicano Richard Nixon – que se apresentou com a barba por fazer – a ser visto como velho, pálido e cansado durante o debate, enquanto o seu opositor, o então senador democrata de Massachusetts John F. Kennedy, usou maquilhagem e foi visto como jovem, enérgico e vibrante, elevando o poder da imagem em detrimento da substância do debate. O confronto, que marcou não só a história dos debates presidenciais como também da televisão, fez mudar o rumo da campanha de Kennedy, que acabou por vencer por uma margem estreita.
Gerald Ford contra Jimmy Carter (1976)
O debate entre o então Presidente dos Estados Unidos Gerald Ford e o governador da Geórgia Jimmy Carter ficou marcado pela gafe crítica do chefe de Estado no contexto da Guerra Fria: “Não há dominação soviética na Europa de Leste, e nunca haverá sob uma administração Ford”. Numa época em que a política externa dominava a atualidade norte-americana e ao negar a realidade do domínio soviético na Europa de Leste, a gafe de Ford ficou registada como uma das maiores na história dos debates presidenciais e Carter viria a vencer a eleição.
Jimmy Carter contra Ronald Reagan (1980)
Carter, o Presidente em exercício, acusou o ex-governador da Califórnia, o republicano Ronald Reagan, de planear cortar o financiamento de saúde Medicare para idosos. Reagan, que havia reclamado que Carter deturpava as suas posições em várias questões, disse com uma risada: “Lá vai você de novo”, uma frase que conquistou o público e que viria a ser novamente usada em alguns debates ao longo dos anos, sempre que pretendia desarmar o seu opositor. Outra das frases mais memoráveis de Reagan no debate foi quando perguntou retoricamente ao público se estavam numa melhor situação do que quatro anos antes.
Ronald Reagan contra Walter Mondale (1984)
Reagan, que com 73 anos era à época o Presidente mais velho da história norte-americana, vinha enfrentando questões sobre a sua avançada idade, algo que o seu rival, o ex-vice-presidente Walter Mondale, de 56 anos, abordou. Mas Reagan conseguiu conquistar o público com a sua resposta: “Não farei da idade uma questão desta campanha. Não vou explorar, para fins políticos, a juventude e a inexperiência do meu oponente”. Reagan foi reeleito.
George HW Bush, Bill Clinton e Ross Perot (1992)
Num formato mais descontraído, com direito a perguntas do público, este raro debate a três – entre o governador democrata Bill Clinton, o empresário independente Ross Perot e o então Presidente George HW Bush -, viria a ser marcado por um erro crucial de Bush, que foi filmado a olhar para o relógio, fazendo-o parecer impaciente e desinteressado no debate.
Num debate televisivo, em que cada pequeno gesto ou palavra está sujeito a escrutínio, Clinton foi visto como uma figura mais simpática do que os seus oponentes, e acabou por vencer a eleição.
George W. Bush contra Al Gore (2000)
Na renhida eleição de 2000, que foi decidida pelo Supremo Tribunal, os debates foram particularmente importantes, com o vice-presidente democrata Al Gore a chegar ao confronto na liderança das sondagens, mas, posteriormente, a perder apoio devido a um estilo que foi visto como algo “agressivo”, segundo Mitchell McKinney, um académico de comunicação política ouvido pela revista Time. Durante o primeiro debate, os microfones apanharam o experiente Al Gore a suspirar alto em resposta às respostas do então governador do Texas, George W. Bush, tendo ainda sido visto a revirar os olhos e a balançar a cabeça em frustração em outros momentos. Já no terceiro debate entre ambos, Al Gore foi criticado por invadir o espaço pessoal de Bush, quando o governador caminhou em frente e o vice-presidente se levantou e dirigiu-se ao seu rival, como se procurasse um confronto. Bush, que viria a vencer a acirrada eleição, sorriu e ignorou o movimento de Gore, levando a plateia a rir.
Donald Trump contra Joe Biden (2020)
O primeiro debate entre Joe Biden e Donald Trump em 2020 foi definido pelo caos. O magnata republicano interrompeu constantemente o candidato democrata, enquanto o moderador Chris Wallace se esforçava para conseguir a palavra. Num desses momentos, Biden tentava responder a uma pergunta sobre o Supremo Tribunal, mas continuava a ser interrompido pelos comentários de Trump sobre a “esquerda radical”. Biden chegou então a um ponto de rutura e declarou: “Vais calar a boca? Isso é tão antipresidencial”.
Joe Biden contra Donald Trump (2024)
O debate de 27 de junho deste ano entre Joe Biden e Donald Trump tornou-se num dos mais importantes da história norte-americana, uma vez que levou a que o atual Presidente em exercício abandonasse a sua tentativa de reeleição, após uma forte pressão vinda do seu próprio partido. Com o democrata a revelar uma voz rouca – devido a uma gripe – o que ajudou a passar desde início uma imagem fragilizada, Donald Trump encadeou falsas afirmações com calma e confiança. Biden, apesar de ofensivo na substância das suas respostas, mostrou-se confuso e com dificuldades de dicção em vários momentos do debate, durante o qual os rivais entraram em confronto em temas como inflação, imigração ou Ucrânia. Biden, que é o Presidente em exercício mais velho da história norte-americana, com 81 anos, tinha o desafio de demonstrar durante o debate que ainda tinha capacidade física e mental para derrotar Trump e liderar o país por mais quatro anos, mas perdeu a linha de raciocínio em algumas ocasiões, tendo mesmo chegado a ficar paralisado durante alguns segundos enquanto procurava a palavra certa a usar.
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